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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3823 Data: 06 de agosto de 2011
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56ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA
-Sabadoido, não... Sabadoyle. - corrigi a tempo.
-Já estranhava a demora, pois uma das primeiras perguntas que me fazem, quando me abordam, é sobre o Sabadoyle.
-Eu imagino São Pedro quando o viu chegando ao céu: “Agora, o Sabadoyle pode recomeçar aqui.”
-Quem entende das recepções de São Pedro é o Manuel Bandeira. - disse, reportando-se ao poema da Irene.
-Foram quase 2000 reuniões do Sabadoyle.
-Precisamente, 1708 reuniões; teve seu começo em 1964 e terminou em 1998.
Eu ia dizer que durou mais do que a ditadura militar, mas freei a tempo a minha língua com essa piada de gosto duvidoso.
-Foram 34 anos ininterruptos, durante todos os sábados à tarde. O poeta Raul Bopp criou o nome Sabadoyle.
-Sabadoyle é uma palavra-valise. James Joyce foi o mestre das palavras-valises e quebrou a cabeça dos que traduziram Ulisses, entre eles, Antonio Houaiss.
-Tenho algumas edições do livro que revolucionou a técnica do romance no século XX.
-Dos participantes do primeiro Sabadoyle, alguém está vivo?
-Quando eu fui entrevistado em 1999, pela revista VEJA, só estávamos vivos eu e o Wilson Cunha; com a minha morte, em 2000, ele ficou como sobrevivente.
-Não ficou mais; morreu em 2010. - informei.
-Esqueci-me – estapeou levemente a cabeça - ele já participou dos últimos Sabadoyles celestiais.
-Você se referiu aos membros assíduos, pois a Tônia Carrero, por exemplo, participou de um Sabadoyle e ainda está viva.
-É verdade. Quando avisei que a Tonia Carrero participaria da nossa reunião, os velhinhos se assanharam todo.
-Soube que, em momento algum, Carlos Drummond de Andrade a olhava. Ressabiada, ela perguntou por quê e o poeta respondeu que temia encarar tanta beleza.
-É verdade – sorriu Plinio Doyle – ela relembrou isso anos depois para os jornalistas.
-De que vocês falaram nos primórdios do Sabadoyle, nas primeiras medidas do presidente Castelo Branco?... Ou o início das reuniões foram anteriores a abril de 1964?... - mostrei-me curioso.
-Ficou estabelecido que dois temas eram proibidos no Sabadoyle: política e religião.
-A religião é fundamentada em dogmas, não há como os adeptos de uma religiosidade debatê-la racionalmente, mas política se pode tratar de maneira racional, mesmo que se tenham simpatias. - intervim.
-Mas, de uma maneira geral, as pessoas não tem simpatias, nutrem paixões políticas. Apesar dos grandes cérebros presentes no Sabadoyle, preferimos não arriscar com temas políticos.
-Lembro-me agora que muitos cientistas alemães, um ou dois que até mereciam o título de gênios, se bandearam para o lado de Hitler. Creio que eles inspiraram a célebre frase de Einstein sobre as duas únicas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana, embora ele não estivesse certo sobre a eternidade do universo.
-Isso mesmo.
-Existe em muitas pessoas um descompasso entre a inteligência cognitiva e a inteligência emocional.
-Repetindo: fora religião e política, qualquer assunto podia ser explorado.
-Futebol, música popular brasileira?...
-As manifestações populares tinham acesso livre entre os participantes das nossas reuniões, embora poucas vezes se falasse do popular, e a música das nossas conversas era, de uma maneira geral, a erudita. Mas Manuel Bandeira foi um dos nossos e escreveu uma página brilhante sobre Sinhô e da sua dramática morte, na rua.
-Plínio Doyle, conversei, recentemente com Vinícius de Moraes, e ele disse, praticamente, que foi Manuel Bandeira que o trouxe para a poesia do cotidiano, tirando-o daqueles versos etéreos.
-Sim, ele trocou os livros de poesia pelas letras de canções.
-Não se falava em política, mas políticos podiam enfrentar o Sabadoyle?- perguntei, mas com a entonação afirmativa.
-As portas estavam abertas...
Uma lembrança anuviou o seu rosto, enquanto ele prosseguia:
-Certa vez, em 1975, eu me vi numa situação difícil: recebi a visita do presidente Juscelino Kubitschek, quando lá se encontrava o brigadeiro Nélson Freire Lavenère Wanderley que, como ministro do governo Castelo Branco, assinou a sua cassação política.
-Juscelino o reconheceu?
-Sim; houve um estranhamento e, por segundos, o clima ficou pesado. Então, como dois homens civilizados, eles trocaram um aperto de mão formal e a reunião prosseguiu com a animação costumeira.
-O ódio dos militares pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek estava tão encruado que eles condicionaram a liberação da nova sede da Academia Brasileira de Letras à derrota da sua candidatura a imortal. E assim ganhou... nem sei mais quem foi o vencedor.
E arrematei:
-Nem esse assunto foi tratado no Sabadoyle?
-Nada de política. Celebrávamos a arte da convivência. Todos ouviam e falavam.
-Carlos Drummond de Andrade dizia que lhe cabiam todos os méritos de receber, distrair, alimentar e, às vezes, (por que não?) suportar com tolerância cristã as caceteações de um conviva menos obediente às leis da concisão e do gosto?
-Grande Carlos Drummond de Andrade!... Quando morreu, o Sabadoyle prosseguiu, mas não era o mesmo, apesar de ele não se manifestar muito, como um mineiro autêntico. Nós nos falávamos por telefone quase todos os dias. Drummond era um mestre em passar trote nos amigos, por telefone. A perda foi irreparável para todos: família, amigos e Brasil.
-Outra grande perda foi Pedro Nava, que se matou.
Nem me fale. Dois dias antes de se matar, esteve no Sabadoyle. Lá, contou muitas piadas, até de suicídio, não despertando nos presentes a menor suspeita... No meu livro de memórias, encontrei dificuldades para superar a tristeza na hora de escrever sobre o fim do Drummond e do Pedro Nava.
-O Carlos Drummond de Andrade dizia que você também tinha o mérito de alimentar, o que você oferecia aos integrantes do Sabadoyle?
-Os corpos eram alimentados por biscoito e guaraná, e o espírito pelos livros da minha biblioteca.
-Com tantas conversas, os livros eram consultados a toda hora. - imaginei.
-As dúvidas das conversas um pouco mais ardentes, ou mesmo amenas, eram tiradas naquelas incalculáveis páginas.
Nesse instante, a campainha da casa tocou.
-Espere um momento apenas. - pedi.
-Saí da sala e voltei com Otto Lara Resende.
-O Otto Lara Resende! - animou-se o bibliófilo.
-Eu recebia sábado à tarde, você deveria ir lá. - reclamou em seguida.
-Foi um deslize meu imperdoável, quando vivo, mas pretendo corrigir agora que estou morto. - prometeu o Otto.
-Pena que estou de saída. - levantou-se da poltrona.
-Cite antes de ir embora alguns participantes do Sabadoyle. - pedi.
-Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Raquel de Queirós, Lygia Fagundes Telles, Prudente de Moraes Neto, Afonso Arinos, José Américo de Almeida, Raul Bopp, Joaquim Inojosa, Cândido Mota Filho e muitos outros.
-E as atas dos Sabadoyle? - perguntou-lhe o Otto.
-A cada reunião, um participante era encarregado de redigir uma ata sobre o que foi discutido. Uns escreviam em forma de prosa e outros, em forma de crônica, até de poesia. Muitas atas levam a assinatura de Drummond, estão inéditas. Não selecionei as atas para publicação por causa das suscetibilidades.
-Uma pena. - lamentamos.
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