Total de visualizações de página

sexta-feira, 22 de julho de 2022

3126 - D Doze é bom, treze é demais

----------------------------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 1551D                                       Data: 23 de julho de 2022

----------------------------------------------------------------------------



O DÉCIMO-TERCEIRO TRABALHO


Era Éracles sem agá e era a antítese do nome; preguiçoso, temeroso e nada aventureiro. Pudera, a começar por seu batismo, nem podia ostentar o H, de Héracles, ou de Hércules, por conta do famigerado Formulário Ortográfico de 1943, que baniu daqui do Brasil as elegantes letras W, Y e K do alfabeto universal e impediu o uso do H em nomes próprios, ficando esta pobre letra aprisionada apenas nos dígrafos como NH, LH ou CH. Somente os Paulinhos e Carlinhos podiam ter H, Éracles foi batizado com E.

Esse Formulário de 1943 foi acordado dentro da Academia Brasileira de Letras e, a bem da verdade, houve muito debate sobre o tema. O doublé de tabelião e poeta Zeca Portugal, polemista irascível, cometia seus dodecassílabos furiosos contra a ceifação preconizada no Formulário, mas acabou prevalecendo, aqui, na nossa cidade e no Brasil, a simplificação ortográfica e vimos aparecer a Ditadura dos Escrivães, que estendeu os rigores do Formulário aos novos batizados. Sem agá, sem choro e sem vela.

O poeta Portugal era um caso à parte. Primeiro, ele se dizia tabelião imperial, pois nascera no Segundo Império, com D. Pedro II dando as cartas e depois, porque ostentava um bigode lustroso e perfumado, obtido da cera Mustachinna, que era produzida em Volta Redonda e servia para enegrecer pelos e cabelos. Seu zelo era tanto, que nem café tomava, para não manchar a bigodeira. Uma peruca negra cobria-lhe a calva e, assim paramentado, participava das discussões intermináveis na ABL, cioso do valor do alfabeto de 26 letras. Foi perdedor, mas deixou-nos seu legado:

"Dizem-me velho, quem reclama é o alfabeto,
Cortam-me  letras, são três que aqui me podam,"

E por aí seguia o velho Portugal troçando alfabeto, desafeto, concreto e outras rimas menores. 

É esquisito o Brasil, burocrático, emperrado, justiça lenta e obsoleta, mas é aqui que aparece, no fim de uma semana, um Collor que tira o dinheiro de todos e uma ABL, que atazanou a vida dos brasileiros durante uns vinte anos, sem direito a veto ou voto. 

Este tormento acabou por si só, no tempo ventilado da bossa nova, em uma rebelião natural, uma desobediência civil generalizada que permitiu o batizado, com nomes esdrúxulos, de muitos futuros jogadores de futebol. O que seria de nós sem tal providência?

O tempo voa e Éracles já estava nos 40 anos, era casado com a argentina Myrna, esta com invejável direito a Y no nome e, com eles, seus quatro filhos. Como a corda era uma só, a caçamba sempre andava lotada, ou andava todo mundo, ou ninguém se mexia.

Aos sábados, a caçamba era freguesa da feijoada dos amigos em um belo sítio de Campo Grande, com seus componentes mais tradicionais, torresmo, cerveja, caipirinha e uísque, consta até que alguns comiam feijão; laranja tinha, mas era só pra quem pedia. Todos iam com as famílias, propiciando um ambiente entrosado entre as crianças e de maldosas fofocas entre as patroas. Myrna, por seu sotaque portenho, era meio que posta de lado e compensava o silêncio indesejado com caipirinhas em sequência, sempre alternando cachaça com vodca, certa de que o álcool da cana não se somaria ao de cereal, um teorema presumivelmente argentino que não acabaria em tango.

Naquele fim de tarde, Myrna despertou da soneca muito torta. Todos embarcados no galaxie, ela determinou:
" - Sem curvas, Éracles, sem curvas!" 

Éracles ponderou que a descida do estacionamento obrigaria a uma série de obstáculos verticais e horizontais e, para surpresa geral, seus argumentos geológicos foram bem aceitos. Myrna desceu a pé a escadaria e esperou no portão. Mas, ao reentrar no carro, repetiu a ladainha sobre a inexistência das curvas.

Dirigida tão suavemente quanto possível e contando com a boa sorte do povo, a viagem seguiu, lenta e cautelosa, pelas estradinhas que eram felizmente bastante retas, pois não havia de verdade qualquer curva que fosse digna do nome. Em poucos quilômetros, nossa Myrna adormeceu sentadinha no banco macio e, poderia se dizer, o sucesso era silencioso e total.

Porém, quando chegaram perto de casa, na Glória, ela despertou. Justamente quando era necessário dobrar na Praça Paris para pegar a Augusto Severo, fazendo duas curvas seguidas de 90 graus, aparecia essa geometria capaz de transtornar um ser delicado, de estômago sensível. 

Na segunda curva, veio o comando: "Pare que não vai dar..."

Éracles encostou no meio-fio, a porta abriu-se num instante e foi realizada a temível operação noves fora zero, sem respingos; cena feia, mas sem nenhuma consequência para os demais ocupantes, não estivesse um dos travestis, habituais ali, vendo tudo.

Pele tostada de sol, tomara-que-caia branco realçando o contraste com a tez  mourisca, com o decote firme nos peitos extensamente siliconados, a peça veio se aproximando, nem depressa demais que pudesse ofender e nem devagar demais, pois poderia perder o desfecho. Quando chegou perto do carro o suficiente, Éracles era um heroi petrificado, imóvel, as crianças apenas olhando, atentas e a combalida Myrna ainda debruçada no banco, inerte em seus finalmentes, ouviu-se do rebolante transexual sua bem proferida recomendação:

"- Viu no que dá sair com mulé?""

As crianças podem não ter entendido o sentido da coisa, mas Zeus, o pai mitológico, entendeu e lançou dois raios não letais que nem chamuscaram o vestido, mas foram suficientes para o traveco evaporar das vistas. 

Myrna foi afastada com o devido cuidado de seus caldos, mais ou menos perfeitamente e este décimo terceiro trabalho acabou nos duzentos metros finais que faltavam.


Um comentário:

  1. "Sem curvas" é otimo.
    Quantas pessoas que conheço adorariam caminhos sem curvas...

    ResponderExcluir