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quarta-feira, 27 de julho de 2022

3128 - Médicos x Roosevelt e Churchill (Reedição)

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2227                                       Data: 23 de dezembro de2004

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ROOSEVELT E CHURCHILL DÃO TRABALHO AOS MÉDICOS

                    

Enquanto William Randolph Hearst recorria a todos os meios legais e ilegais para evitar que o filme Cidadão Kane chegasse às telas, pedia auxílio financeiro ao governo Roosevelt para manter o seu império jornalístico, ora combalido. O auxílio foi negado e William Randolph Hearst, que considerava Roosevelt um comunista que acabaria levando os Estados Unidos à guerra contra a Alemanha e não contra a Rússia, ameaçou publicar fotos de aleijado do presidente em todos os seus jornais espalhados pelo país. A recusa foi mantida, quem cuidaria agora das bazófias do magnata decadente seria Orson Welles.

Franklin Delano Roosevelt evitou todas as maneiras possíveis e impossíveis que o povo o visse como inválido. Com o envolvimento dos Estados Unidos na guerra, e a aparição dos primeiros soldados americanos mutilados, o presidente já se deixava fotografar na cadeira de rodas. 

No ano de 1944, a sobrecarga emocional com a guerra trazia-lhe sérios males físicos; tornara-se um hipertenso à beira do derrame cerebral. Outro fator que o aproximava da morte era o fumo, embora os médicos da época, incluindo os seus, não atentassem muito para isso tal era a campanha pró-fumo das grandes empresas tabagistas. Lembramos que, quando fora acometido pela poliomielite aos 39 anos, deitou-se na maca que o levaria ao hospital com o seu cachorro nos braços e uma piteira fumegante na boca.

Em 1944, pouco antes das eleições presidenciais americanas, o médico de Franklin Delano Roosevelt diagnosticara  hipertensão aguda e insuficiência cardíaca congestiva. Ele não resistiria a um quarto mandato, mas Roosevelt recusava-se a deixar o seu posto de comandante em chefe.

No dia 25 de março desse ano, o doutor Bruenn só concebia uma maneira de salvar a vida de Roosevelt: livrá-lo das tensões mentais e das influências emocionais.  O médico esboçou as medidas a serem tomadas, mas logo percebeu que entrara no terreno da ficção.

Enquanto isso, em Londres, o grande aliado de Roosevelt, Winston Churchill, também dava problemas aos médicos. Aproximava-se dos 70 anos e nenhum médico poderia prever que chegaria aos noventa, como chegou. Tinha de cortar os coquetéis de papaia com uísque diluído que bebia “all day long”, porém, diante das recomendações médicas, era rebelde:

- “A bebida é minha criada, não minha senhora”.- retrucava.

Os charutos, mesmo os puríssimos havanas, não possuíam  o encanto hollywoodiano dos cigarros, e por isso foram também vetados pelos médicos de Churchill, que permaneceu rebelde e com o charuto na boca.

Um ano antes, isto é, em 28 de novembro de 1943, depois de reunir-se com Roosevelt e Stalin, em Teerã, pegou pneumonia e ficou entre a vida e a morte. Declarou, depois, que foi salvo pela sulfa e pelo conhaque, mas a história diz que deve a vida ao médico que descobrira a penicilina. Reza a lenda que seria essa a segunda vez que a mesma pessoa o salvava da morte, pois, quando garoto, afundando-se numa piscina, foi socorrido pelo filho do jardineiro, o Alexandre Fleming. Churchill, em “Minha Mocidade”, escreve os acontecimentos de outra maneira. Com dez anos de idade, brincava com outras crianças na propriedade de uma tia, em Bournemouth. Era uma brincadeira de pegar no meio de pinheirais “que desciam por ondulações arenosas terminadas em penhascos, às lisas e duras praias do Canal da Mancha”. Cercado pelos perseguidores, o pequeno Churchill anteviu uma maneira de escapulir. “Meu raciocínio era certo, mas os dados dos problemas estavam errados. Levei três dias sem sentido e fiquei de cama mais de três meses. Caí de 29 pés de altura num terreno duro, embora certamente os galhos atenuassem a minha queda.” Carlos Lacerda, o tradutor da “Minha Mocidade”, escreveu 29 pés; é isso aí: Churchill caiu de uma altura próxima de 9 metros e meio. Além de não cair na piscina, Alexandre Fleming tinha três anos de idade na época.

No início dos anos 30, Churchill seria atropelado por um carro em Nova York, ou seja, sempre deu trabalho aos médicos; em 1944 não era diferente. Vivia irritadíssimo com as bombas V1 que já mataram 3 mil civis ingleses e feriram 8 mil, e brigava com os seus generais que não concordavam com a sua retaliação: lançar gás venenoso contra os civis alemães.

Roosevelt, muitos quilos mais magro, assustou o povo americano pela sua aparência mórbida quando apareceu na televisão para anunciar a sua intenção de candidatar-se ao cargo presidencial pela quarta vez. Não pretendia mesmo deixar os seus soldados no meio da guerra, e não suportava a idéia de imaginar Thomas Dewey, o candidato republicano, no seu lugar.

A campanha eleitoral foi amarga; Thomas Dewey reconheceu a derrota pelo rádio, mas não enviou o telegrama tradicional de felicitações ao adversário vitorioso.

- “Eu sempre o achei um filho da puta”.- reagiu Roosevelt, enquanto empurravam a sua cadeira de rodas para o seu quarto, em Springwood.

Poucos meses antes dessa eleição, mais precisamente 20 de julho de 1944, houvera o atentado contra a vida de Hitler, encabeçado por generais alemães; mas, por ironia, quem mais estivera perto da morte nesse dia foi Franklin Delano Roosevelt. O presidente foi encontrado no chão, em São Diego, pelo filho James, depois de observar um exercício de desembarque de tropas nas praias da Califórnia. Sofrera um acidente vascular cerebral de pequena intensidade. Recuperou-se e ordenou segredo ao filho, nem o seu médico poderia saber do ataque. James Roosevelt disse mais tarde que poderia desobedecer ao pai, mas nunca ao comandante em chefe.

 Hitler, como todos sabemos, sobreviveu ao atentado com mais de cem farpas da madeira de carvalho da mesa e das cadeiras, que foram para os ares, encravadas pelo seu corpo. Os generais envolvidos foram fuzilados, Rommel foi obrigado a cometer suicídio e os demais conspiradores, por ordem de Hitler, foram enforcados com cordas de piano e pendurados em ganchos de açougue. Essas execuções foram filmadas e enviadas a Hitler. Segundo o jornalista Paulo Francis, esses filmes, que de vez em quando Hitler assistia, eram o seu Tom e Jerry.

Roosevelt já perdera a voz enérgica dos discursos no Congresso em que dizia que a guerra era contra bandidos, mas ainda se mantinha no seu posto nos primeiros meses de 1945.


terça-feira, 26 de julho de 2022

3127 - Jogando com Napoleão (reedição)


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2224                                       Data: 20 de dezembro de2004

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ENXADRISTA

Eis uma coisa que eu não sabia: máquinas já tinham fama de enxadristas desde o final do século XVIII. Soube através do documentário que o canal de TV, HBO, apresenta, neste mês de Natal, sobre as célebres partidas disputadas entre o campeão mundial, Garry Kasparov, e Deep Blue, o supercomputador projetado pela IBM que possuía a capacidade de analisar 200 milhões de posições por segundo. Logo nas cenas iniciais desse documentário, é citado com imagens “o Turco”, uma máquina de jogar xadrez, e é citado também Napoleão Bonaparte, o adversário do Turco numa célebre partida. 
O Departamento de Pesquisas do nosso periódico foi imediatamente acionado e colhemos alguns dados sobre o Turco, sobre o Francês que nasceu na Córsega e até sobre Che Guevara, o argentino que foi ministro da Fazenda em Cuba e morreu como guerrilheiro na Bolívia.
Com a efervescência da Revolução Industrial no final do século XVIII, um engenheiro austríaco, Wolfgang von Kempelen, apresentou ao público a sua invenção: uma máquina que jogava xadrez. Era essa máquina revestida de madeira, onde se destacava um boneco sentado diante de um tabuleiro de xadrez, trajando vestimentas turcas. Três portinholas, quando abertas na máquina de Kempelen, proporcionavam aos curiosos a visão dos intricados mecanismos do seu interior onde, diziam, não havia espaço para um ser humano esconder-se e ajudar o boneco turco.
As apresentações públicas do Turco, como apelidaram a máquina de jogar xadrez, tornaram-se um acontecimento na sociedade vienense já nos anos 70 do século XVIII.  Diga-se, de passagem, que a Turquia era moda em Viena, nessa época: Mozart compusera a Marcha Turca, e lançara a ópera o “Rapto no Serrralho”, com motivos da Turquia.
Com o sucesso, o Turco passou a viajar pela Europa, apresentando-se nas mais diferentes capitais. O procedimento básico a ser respeitado pelos interessados nas apresentações do Turco era escolher como seu adversário um integrante da platéia que mostrasse conhecimentos do jogo de xadrez. Realizava-se, então, a partida sob mil olhares incrédulos. No momento de o turco jogar o seu lance, ouvia-se do interior da máquina os giros das rodas dentadas para, em seguida, dar-se a cena miraculosa: o boneco pegava uma peça do tabuleiro com a mão esquerda, erguia-a, e executava o seu lance. Para muitos da platéia, isso nada tinha de tecnológico e sim de sobrenatural, alguns até faziam o sinal da cruz.
A grande maioria dos jogos era vencida pela máquina. Mas as disputas com exímios enxadristas, como a com Philidor, em Paris, considerado o melhor enxadrista da época, redundaram em derrotas para o Turco.
Morreu, anos depois, o criador da máquina, mas não a sua criatura, que ainda gozava de sucesso junto ao público. O filho de Kempelen, sem a paciência do pai, vendeu, então, o Turco, por uma dinheirama para o artista mecânico Johann Nepomuk Maelzel, que sabia muito bem a preciosidade que tinha em mãos. 
Napoleão Bonaparte, que nesse tempo costumava ir à Áustria para aplicar homéricas sovas nos austríacos, revelou, como aficionado do xadrez que era, o seu desejo de jogar uma partida contra a máquina. Agendaram, então, uma partida entre os dois para o dia 9 de outubro de 1809, em Viena. A partida aconteceu e terminou com a derrota “acachapante”, como diriam os locutores de futebol de hoje, do poderoso Imperador da França.
Contam que Napoleão, em dado momento do jogo, executou propositalmente um lance errado; foi, então, corrigido pela máquina. Repetiu o erro e foi de novo corrigido. No terceiro erro, Napoleão foi surpreendido por uma crise de nervos do Turco, que lançou o tabuleiro pelos ares.  Saiu, em seguida, de dentro da máquina Johann Allgaier, um gênio do xadrez.  Como o Biscoito Molhado não é o jornal da cidade de Shinbone de “O Homem Que Matou o Facínora”, não sairá impressa aqui a lenda. É verdade que enxadristas geniais tem chiliques de vez em quando, mas diante de Napoleão Bonaparte, depois de vencer os austríacos, nem o Turco, nem a Turquia inteira se atreveria... Prossigamos.
Décadas depois do jogo com Napoleão, o Turco ainda jogava (é claro, ficou bem mais famoso). Em 1837, no entanto, um enxadrista francês, Jacques François Mouret, procurou a imprensa, e fez revelações escandalosas: um homem poderia enfiar-se no meio dos mecanismos da máquina, seguir o andamento das partidas e mover a mão esquerda do boneco turco.  Só não mostrou na prática como isso acontecia porque o Turco fora vendido para os americanos, há algum tempo.
Nos Estados Unidos, o Turco reviveu o sucesso da Europa, mas as suspeitas de fraude começaram a agitar alguns espíritos. O grande escritor Edgard Allan Poe, percebendo espertezas no ar, redigiu um artigo denunciando a fraude. Paulatinamente, a fascinação que aquela máquina de jogar xadrez exercia sobre a platéia arrefeceu até o Turco virar curiosidade de um museu da Filadélfia, que o recebera como doação. Em 1854, esse museu era completamente destruído por um incêndio, nem o Turco que derrotara Napoleão, nos áureos tempos dos dois, escapou.
O imperador francês era fortemente atraído pelo jogo de xadrez que, na realidade, representa uma guerra, onde os peões vão na frente e o objetivo é matar o rei (xeque mate, Shah mat, no idioma persa significa o rei está morto). Mas trata-se de uma guerra asséptica, sem o troar dos canhões, o levantar da poeira pelos cavalos, os gritos e o sangue, talvez por isso Napoleão Bonaparte, embora aficionado, fosse um enxadrista limitado. Registram os historiadores que o adversário enxadrístico mais constante do Imperador foi o Marechal Ney, que quase sempre o vencia. Preso na Ilha de Santa Helena, Napoleão se distraía com o tabuleiro e as suas trinta e duas peças e sessenta e quatro casas. Talvez por serem raras as vitórias napoleônicas nesse tipo de guerra, há o registro de uma partida sua contra o General Bertrand, em 1818. Napoleão, com as brancas, sai com o cavalo na terceira casa do bispo do rei e no décimo oitavo lance, vence a partida. 
O espirituoso comentarista do jogo de xadrez e escritor, Tartakower, dividiu os jogadores em quatro grupos:
Jogadores fracos que não sabem que são fracos; são ignorantes - evite-os.
Jogadores fracos que sabem que são fracos; são inteligentes – ajude-os.
Jogadores fortes que não sabem que são fortes; são modestos – respeite-os.
Jogadores fortes que sabem que são fortes; são sábios – siga-os.
Napoleão foi um jogador fraco, mas inteligente como era, certamente tinha consciência da sua fraqueza.
Quanto a Che Guevara, de quem prometemos falar, foi um respeitado enxadrista, apesar de amador. Em 1962, em Havana, jogando com as peças pretas, empatou com o grande mestre internacional, argentino como ele, Miguel Najdorf, que enriquecera o universo do xadrez com a criação da “variante Najdorf”. Essa partida foi também registrada pelos historiadores. 
Pretendíamos dizer, no início desta edição, que o documentário do HBO levado às telas da televisão estabelecia um paralelo entre o jogo de Kasparov contra o supercomputador Deep Blue com o jogo entre Napoleão Bonaparte contra o Turco, mas deixamos o documentário de lado logo em seguida. Bem, dia desses retornaremos a ele.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

3126 - D Doze é bom, treze é demais

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 1551D                                       Data: 23 de julho de 2022

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O DÉCIMO-TERCEIRO TRABALHO


Era Éracles sem agá e era a antítese do nome; preguiçoso, temeroso e nada aventureiro. Pudera, a começar por seu batismo, nem podia ostentar o H, de Héracles, ou de Hércules, por conta do famigerado Formulário Ortográfico de 1943, que baniu daqui do Brasil as elegantes letras W, Y e K do alfabeto universal e impediu o uso do H em nomes próprios, ficando esta pobre letra aprisionada apenas nos dígrafos como NH, LH ou CH. Somente os Paulinhos e Carlinhos podiam ter H, Éracles foi batizado com E.

Esse Formulário de 1943 foi acordado dentro da Academia Brasileira de Letras e, a bem da verdade, houve muito debate sobre o tema. O doublé de tabelião e poeta Zeca Portugal, polemista irascível, cometia seus dodecassílabos furiosos contra a ceifação preconizada no Formulário, mas acabou prevalecendo, aqui, na nossa cidade e no Brasil, a simplificação ortográfica e vimos aparecer a Ditadura dos Escrivães, que estendeu os rigores do Formulário aos novos batizados. Sem agá, sem choro e sem vela.

O poeta Portugal era um caso à parte. Primeiro, ele se dizia tabelião imperial, pois nascera no Segundo Império, com D. Pedro II dando as cartas e depois, porque ostentava um bigode lustroso e perfumado, obtido da cera Mustachinna, que era produzida em Volta Redonda e servia para enegrecer pelos e cabelos. Seu zelo era tanto, que nem café tomava, para não manchar a bigodeira. Uma peruca negra cobria-lhe a calva e, assim paramentado, participava das discussões intermináveis na ABL, cioso do valor do alfabeto de 26 letras. Foi perdedor, mas deixou-nos seu legado:

"Dizem-me velho, quem reclama é o alfabeto,
Cortam-me  letras, são três que aqui me podam,"

E por aí seguia o velho Portugal troçando alfabeto, desafeto, concreto e outras rimas menores. 

É esquisito o Brasil, burocrático, emperrado, justiça lenta e obsoleta, mas é aqui que aparece, no fim de uma semana, um Collor que tira o dinheiro de todos e uma ABL, que atazanou a vida dos brasileiros durante uns vinte anos, sem direito a veto ou voto. 

Este tormento acabou por si só, no tempo ventilado da bossa nova, em uma rebelião natural, uma desobediência civil generalizada que permitiu o batizado, com nomes esdrúxulos, de muitos futuros jogadores de futebol. O que seria de nós sem tal providência?

O tempo voa e Éracles já estava nos 40 anos, era casado com a argentina Myrna, esta com invejável direito a Y no nome e, com eles, seus quatro filhos. Como a corda era uma só, a caçamba sempre andava lotada, ou andava todo mundo, ou ninguém se mexia.

Aos sábados, a caçamba era freguesa da feijoada dos amigos em um belo sítio de Campo Grande, com seus componentes mais tradicionais, torresmo, cerveja, caipirinha e uísque, consta até que alguns comiam feijão; laranja tinha, mas era só pra quem pedia. Todos iam com as famílias, propiciando um ambiente entrosado entre as crianças e de maldosas fofocas entre as patroas. Myrna, por seu sotaque portenho, era meio que posta de lado e compensava o silêncio indesejado com caipirinhas em sequência, sempre alternando cachaça com vodca, certa de que o álcool da cana não se somaria ao de cereal, um teorema presumivelmente argentino que não acabaria em tango.

Naquele fim de tarde, Myrna despertou da soneca muito torta. Todos embarcados no galaxie, ela determinou:
" - Sem curvas, Éracles, sem curvas!" 

Éracles ponderou que a descida do estacionamento obrigaria a uma série de obstáculos verticais e horizontais e, para surpresa geral, seus argumentos geológicos foram bem aceitos. Myrna desceu a pé a escadaria e esperou no portão. Mas, ao reentrar no carro, repetiu a ladainha sobre a inexistência das curvas.

Dirigida tão suavemente quanto possível e contando com a boa sorte do povo, a viagem seguiu, lenta e cautelosa, pelas estradinhas que eram felizmente bastante retas, pois não havia de verdade qualquer curva que fosse digna do nome. Em poucos quilômetros, nossa Myrna adormeceu sentadinha no banco macio e, poderia se dizer, o sucesso era silencioso e total.

Porém, quando chegaram perto de casa, na Glória, ela despertou. Justamente quando era necessário dobrar na Praça Paris para pegar a Augusto Severo, fazendo duas curvas seguidas de 90 graus, aparecia essa geometria capaz de transtornar um ser delicado, de estômago sensível. 

Na segunda curva, veio o comando: "Pare que não vai dar..."

Éracles encostou no meio-fio, a porta abriu-se num instante e foi realizada a temível operação noves fora zero, sem respingos; cena feia, mas sem nenhuma consequência para os demais ocupantes, não estivesse um dos travestis, habituais ali, vendo tudo.

Pele tostada de sol, tomara-que-caia branco realçando o contraste com a tez  mourisca, com o decote firme nos peitos extensamente siliconados, a peça veio se aproximando, nem depressa demais que pudesse ofender e nem devagar demais, pois poderia perder o desfecho. Quando chegou perto do carro o suficiente, Éracles era um heroi petrificado, imóvel, as crianças apenas olhando, atentas e a combalida Myrna ainda debruçada no banco, inerte em seus finalmentes, ouviu-se do rebolante transexual sua bem proferida recomendação:

"- Viu no que dá sair com mulé?""

As crianças podem não ter entendido o sentido da coisa, mas Zeus, o pai mitológico, entendeu e lançou dois raios não letais que nem chamuscaram o vestido, mas foram suficientes para o traveco evaporar das vistas. 

Myrna foi afastada com o devido cuidado de seus caldos, mais ou menos perfeitamente e este décimo terceiro trabalho acabou nos duzentos metros finais que faltavam.


terça-feira, 19 de julho de 2022

3125 - Matarazzo (Reedição)

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 360                                       Data: 12 de dezembro de 2004

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OS MATARAZZO E ASSIS CHATEAUBRIAND

                     

A comparação entre o maior empresário do Segundo Império, Barão de Mauá, e o maior da República Velha, Francesco Matarazzo, era inevitável. Em dado momento, o entrevistador não se conteve, interrompeu o entrevistado e fez a comparação. Ronaldo Costa Couto concordou inteiramente.

- “O Barão de Mauá é agora mais reconhecido pelo excelente livro do Jorge Caldeira, mas o Conde Francesco Matarazzo está mais esquecido ainda...”.

A força empreendedora dos dois empresários era inigualável ou só comparável entre si, mas há diferenças entre os gigantes: o Barão de Mauá era bem mais aristocrático do que o Conde Francesco Matarazzo. O conde, no início da construção do seu império, sacrificou porcos com facão, derreteu banhas e foi açougueiro do açougue em que era dono. Teve o cérebro do empresário, sem perder os músculos do operário. Chegava às sete horas no escritório e só não chegava às cinco horas da manhã, porque a esposa, Filomena, protestava com a gesticulação própria das italianas. Não podemos afirmar com certeza absoluta que os treze filhos do casal sejam provas do poder de convencimento da Filomena... Desses treze filhos, nove nasceram no Brasil, e quatro na Itália.

Ronaldo Costa Couto, comentando a intervenção do Roberto D' Ávila com o Barão de Mauá, inseriu a figura do Assis Chateaubriand, que também o impressionava:

- “... Décimo segundo filho de um casal de Umbuzeiro, interior da Paraíba, que construiu um império jornalístico, Roberto. Impressionante também”.

Em 1920, Assis Chateaubriand, escrevendo no Jornal do Brasil, ainda sonhava com o seu primeiro jornal. Morre Ermelino Matarazzo e Assis Chateaubriand capricha tanto no obituário que redigiu, que o telefone da redação do Jornal do Brasil toca: era o Conde Francesco Matarazzo, que pretendia conhecê-lo. Um encontro entre os dois é então marcado. Conhecem-se, Chateaubriand o saúda, e recebe, em seguida, os agradecimentos pelas palavras elogiosas que dedicara ao seu filho morto. Na despedida, o Conde Matarazzo lhe estende a ponta do paletó e pede que Assis Chateaubriand raspe os dedos nessa ponta de paletó. Diante do espanto do jornalista paraibano, o Conde Matarazzo lhe explica que se trata de uma tradição da Calábria:

- “Fazendo isto, a minha sorte passará para você”.

Não sabemos se o Ronaldo Costa Couto narra esta passagem na sua obra sobre os Matarazzo, mas Fernando Morais a narrou no “Chatô, o Rei do Brasil”.

Os modos aristocráticos, diríamos mais, e o refinamento, chegam aos Matarazzo do Brasil com o sobrinho do conde, o Ciccilo. Ele, como já foi assinalado, tinha uma inclinação irresistível pelas artes e a cultivou sem esmorecimento enquanto viveu.

- “Baby Pignatari, o Francesco Matarazzo Pignatari, foi o maior amigo de Assis Chateaubriand, mas Ciccilo também foi seu grande amigo”.- enfatizou o Ronaldo Costa Couto na entrevista.

A sorte do paletó do Conde passara para Chateaubriand e este já era o proprietário da mais poderosa rede de comunicações da América Latina quando criou, em 1947, o Museu de Arte de São Paulo (MASP), associado ao galerista italiano Pietro Maria Bardi. No ano seguinte, o Museu de Arte Moderna era criado por Francisco Matarazzo Sobrinho e, ao contrário do MASP, contou desde o início com a representação de todas as áreas das artes e da cultura, que traçaram o perfil e a política de aquisição e de formação do seu acervo. Ciccilo Matarazzo financiou de seu próprio bolso a compra das obras para a coleção do Museu e fomentou seu posterior crescimento com o “Prêmio Aquisição” promovido pelas futuras bienais. Os estatutos do Museu previam a criação de comissões de cinema, arquitetura, folclore, fotografia, gráfica, música, pintura e escultura. Sua sede foi instalada numa sede do edifício dos Diários Associados, na rua 7 de abril, cedida por Assis  Chateaubriand. 

O endereço do MASP prova que o historiador não exagerou, na entrevista, sobre a amizade entre Ciccilo e Chatô. Outra prova dessa amizade foi a Esplanada do Trianon – o espaço cedido por Assis Chateaubriand para a I Bienal promovida por Ciccilo Matarazzo. 

É a autora do livro “Bienal, 50 Anos”, Rosa Artigas que conta:

- “O êxito da I Bienal, apesar de toda a improvisação, mostrou a capacidade de realização de Ciccilo e da equipe do MAM. Ainda sob o impacto do sucesso, já se programava a II Bienal, que viria acontecer no final de 1953, abrindo as comemorações do IV Centenário de São Paulo, sob o comando de Ciccilo Matarazzo, como presidente da Comissão organizadora dos festejos. O local escolhido foi a área do Ibirapuera, na época uma várzea distante e sem nenhuma infra-estrutura urbana”.

“Oscar Niemeyer foi convidado a projetar o conjunto de edificações. Considerando suas dimensões, o Parque, seus edifícios e os jardins de Burle Marx foram construídos em tempo recorde. Dos sete prédios – entre pavilhões e centros de cultura propostos – foram edificados o Pavilhão das Indústrias dos estados e o Pavilhão das Nações, ligados por uma elegante marquise”.

“Considerada uma das mais importantes Bienais, esta 2ª edição reuniu obras dos mais importantes artistas modernos e, como destaque maior, 51 telas, de todas as fases de Picasso, entre as quais Guernica, que, por vontade do pintor, tinha o MoMA como depositário enquanto a Espanha estivesse sob a ditadura franquista. Até então, a grande tela nunca havia deixado Nova York.”

“Em novembro de 1953, a II Bienal começou a ser montada ocupando o Pavilhão das Nações, onde ficaram expostas as representações dos países da Europa e do Oriente, e o Pavilhão dos Estados que recebeu a Mostra Internacional de Agricultura. Eram, no conjunto, 24 000 m2 de exposição. Em 12 de dezembro a mostra foi inaugurada com a representação de 33 países e 3 374 obras”.

“Em 1957, a IV Bienal de São Paulo passou a ocupar definitivamente sua atual sede no Parque Ibirapuera, o Pavilhão Ciccilo Matarazzo”.

Se Ciccilo Matarazzo era um mecenas, era o maior do Brasil, sem a menor dúvida. Assis Chateaubriand, para muitos autores, era um mecenas entre aspas. Esperto, sempre, percebeu, com o fim da Segunda Grande Guerra, o momento de adquirir grandes pinturas de empresários europeus empobrecidos. Adquiriu-as, então, de todo jeito, principalmente com o dinheiro alheio. Resumia a sua filosofia numa frase:

- “Crédito é melhor do que dinheiro; dinheiro acaba, mas crédito a gente sempre estica”.

Assis Chateaubriand foi amigo de Ciccilo, repetimos, mas Chiquinho Matarazzo, que substituíra o grande Francesco à frente do império, o odiava.

- “Na briga entre os dois, a terra tremeu”.- afirmou Ronaldo Costa Couto, enquanto Roberto D' Ávila sorria.



quinta-feira, 14 de julho de 2022

3124 - Molas Garfield (Reedição)


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 346                                        Data: 12 de dezembro de 2004

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JAMES GARFIELD


- “Nossa! Vêm por aí mais vinte edições para falar de outro presidente dos Estados Unidos!” - já imagino alguns assinantes exclamando de mãos na cabeça.

Acontece que chegou uma carta no Departamento de Divulgação do Biscoito Molhado indagando se é mesmo verdade que as molas de um colchão contribuíram para morte de um presidente dos Estados Unidos.

Prometemos tirar essa dúvida com apenas esta edição. Dito isto, vamos em frente.

Tudo começou em 2 de julho de 1881, numa estação da estrada de ferro de Washington, quando o presidente eleito pelo Partido Republicano, James Garfield, foi alvejado pelo disparo do revólver de um advogado. Esse advogado, chamado Charles Guiteau, alegou a promessa de um emprego específico feita pelo presidente e não cumprida, como o motivo do seu gesto tresloucado. Verdade ou não, os estudiosos afirmam que esse atentado contribuiu para a aprovação, dois anos depois, da primeira lei abrangente do serviço civil, a Lei Pendleton.  

Concluirá, talvez, um ou outro leitor:

- “Nos Estados Unidos tudo é motivo para se matar o presidente; até não entrar pela janela no serviço público”.

O presidente não morreu no dia em que recebeu esse tiro, nem nesse mês, nem no mês seguinte. James Garfield possuía a pele escarmentada de quem lutara na Guerra da Secessão e de quem exercera sucessivos postos militares na Brigada de Middle Creek. Antes, graduara-se no Williams College de Massachusetts para se tornar professor de línguas clássicas no Eclectic Institute, em Ohio. Lá, conheceu a sua futura esposa, a estudante Lucretia Rudolph, com quem teve sete filhos mesmo com uma Guerra Civil no meio do casamento.

Depois da guerra, James Garfield seguiu a carreia política, elegendo-se senador por Ohio. Indicado pelo seu partido nas eleições presidenciais de 1880 derrotou por uma quantidade mínima de votos o canditado democrata, General Winfield Scott Hancock. Empossado em 1881, a sua popularidade cresceu, pois atacou de imediato a corrupção política. E, como vimos, com pouco mais de sete meses no cargo, recebeu um tiro disparado por um advogado. 

A bala se alojara no tórax, mas não se sabia o local com precisão. Se penetrara em algum órgão, fazia-se necessária a cirurgia, se não, podia-se aguardar a recuperação do paciente. A localização exata da bala era, portanto, fundamental. Nessa época, recorria-se à sondagem manual no corpo, o que contribuiu para inúmeras mortes por infecção de pessoas baleadas. O Raio-X só seria descoberto quatorze anos depois do atentado à vida do presidente James Garfield. Cabem aqui algumas palavras sobre a descoberta, por acaso, dessa preciosidade para a vida humana.

Na tarde de 8 de novembro de 1895, o físico Wilhelm Conrad Roentgen, reitor da Universidade de Wurzburg, na Alemanha, fazia pesquisas no laboratório da sua casa com o tubo de raios catódicos inventado pelo inglês William Crookes, quando reparou num brilho muito estranho. Enfurnou-se durante seis semanas no seu laboratório para estudar esse brilho estranho, que era uma radiação, que atravessava livros, folhas de alumínio e outras barreiras que ele interpunha entre o tubo e uma placa de material fluorescente. Finalmente, no dia 22 de dezembro, chamou a sua esposa e cobaia, Bertha. Chamou-a e fez, durante 15 minutos, a radiação atravessar a sua mão atingindo, do outro lado, uma chapa fotográfica. Revelada a chapa, viu as sombras dos ossos da mão da sua mulher – era a primeira radiografia da história. Via-se o invisível. Fascinado, mas ainda confuso, Roentgen chamou os raios da sua descoberta de “X”, que é o símbolo da ciência para designar o desconhecido.

Seis dias depois de radiografar a mão da esposa, Roentgen apresentou o seu achado na Universidade de Wurzburg. O fato chegou à imprensa e ver o próprio esqueleto passou a ser o sonho de consumo de todos os alemães. Já no ano seguinte, 1896, os médicos adotavam o Raio-X.

Porém em 1902, nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova Jersey, um grupo de deputados, defensores da moralidade e dos bons costumes, tentou proibir o Raio-X sob a alegação de que essa radiação permitia a qualquer um ver os corpos nus de quem passasse pelas ruas.

Mas é hora de voltarmos ao agonizante presidente James Garfield. 

Existisse o Raio-X já em 1881 e o projétil no tórax do presidente seria visto, apesar dos moralistas americanos; como não existia, o drama se intensificava.

Nos dois meses de padecimento do presidente James Garfield– de 2 de julho a 19 de setembro de 1881, quando faleceu – a cobertura jornalística foi considerada impressionante e selvagem. Curandeiros, pajés, charlatões, rezadores, inventores, ficcionistas, médicos e aproveitadores em geral apresentaram mil palpites para salvar a vida do presidente. As redações dos jornais recebiam um volume inacreditável de cartas dessa gente; e muitas delas eram publicadas.  No meio de todo o corre-corre para salvar o presidente, um cidadão de Baltimore, chamado Simon Newcomb, declarou ao jornal Washington National Intelligencer, que fazia experiência de eletricidade em bobinas. Ressaltou que um desses solenóides, conduzindo corrente, quando próximo a um pedaço de metal, produzia um zumbido tênue, quase inaudível, e que, afastando a bobina do metal, o zumbido sumia.  Em Boston, Graham Bell lera a matéria, e concluiu que o telefone, seu recente invento, poderia ampliar esse zumbido e localizar com precisão a bala no tórax do presidente. Telegrafou então, para Newcomb e, em seguida, partiu para Baltimore. 

Deram os dois então início aos trabalhos: montaram um aparelho que consistia de duas bobinas de fio encapado, uma bateria, um interruptor e o telefone. Uma das bobinas ficava na ponta de uma varinha, que agia como detector. Quando aproximavam um diminuto metal do implemento, o telefone de Graham Bell acusava logo com um claríssimo zunido. Constataram também a sensibilidade do detector: 12 centímetros. Não tinha erro.

Testaram o aparelho com balas deflagradas e não deflagradas escondidas na boca, nas axilas e nas virilhas deles mesmos, e tudo deu certo. Foram, em seguida, para um hospital de veteranos da Guerra Civil, onde muitos tinham balas encravadas em diferentes partes do corpo, e novo sucesso. Aprovado o invento, a missão agora era salvar o presidente. 

No dia 20 de julho, dezoito dias depois do atentado, portanto, Graham Bell, seu assistente e Newcomb se encontravam junto ao leito de James Garfield. O enfermo, já vulnerável, com a expressão assustada, temia ser eletrocutado pelo invento, enquanto acompanhava com os olhos esbugalhados o percurso da varinha milagrosa. Algo, no entanto, dava errado: o zumbido no telefone se avolumava independente da parte do corpo do presidente próxima ao detector. Tentaram eles outras vezes mais, até a exaustão, e sempre dava errado.  Foram, então, convidados a retirarem-se do quarto do presidente.

Os invejosos aproveitaram para tachar Graham Bell de incompetente, de um charlatão em busca de publicidade. Recusando-se a aceitar aquele aparelho como uma geringonça, Graham Bell o desmontou todo, para depois remontá-lo, certificando-se de qualquer mau-contacto. Voltou às experiências com veteranos de guerra com balas pelo corpo e novo sucesso. 

Depois de muitas dificuldades, conseguiu convencer as autoridades da Casa Branca a deixá-lo tentar novamente. No dia 31 de julho, Graham Bell, Tainer, seu assistente, e Newcomb estavam de novo próximo ao leito do presidente que, de novo, temia que a sua morte fosse antecipada por um choque elétrico. Novo fracasso. Bastava aproximar a varinha do presidente e o aparelho zumbia loucamente. Foram os cientistas quase que expulsos da Casa Branca. O fracasso agora era definitivo. Cinqüenta dias depois dessa tentativa, terminava o sofrimento do presidente James Garfield. Morria no dia 19 de setembro.

Muito tempo se passou até que alguém se desse conta do motivo de o aparelho de Graham Bell e Simon Newcomb só desatinar com o presidente dos Estados Unidos: a Casa Branca fora um dos primeiros lugares do mundo a usar um produto novíssimo para o conforto das pessoas: o colchão de mola.


segunda-feira, 11 de julho de 2022

3123 - Objetos Bizarros (Reedição)


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 285                                        Data: 14 de setembro de 2004

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MUSEU DE OBJETOS BIZARROS


Foi notícia nos jornais ingleses e aqui no Brasil chegou através da internet: o Museu de Ciências de Londres exibe aquela que é considerada uma das mais bizarras coleções científicas do mundo. São 170 mil objetos espalhados por seis andares de um prédio vitoriano. 

Lá se encontram inúmeros telescópios, incluindo aquele em que o Capitão Cook descobriu a Austrália, e avistou, certamente, o primeiro canguru.  Entre tantos objetos não poderiam faltar as antigas cadeiras de dentista. Quem costumava ver os filmes mudos do Carlitos, recorda-se naturalmente que a cadeira de dentista era uma geringonça tão estranha, naquele tempo que em uma extração de dente exigia anestesia geral, que o artista descobriu comicidade no que para muitos seria uma cadeira de torturas. Não só Charles Chaplin descobriu comicidade, também W.C. Fields, aquele que bebia tanto que atuava com um copo na mão, e disse que encontraram hemácias no seu exame de uísque. Pois W.C. Fields teve de largar o copo para segurar um boticão na cena de um filme em que arrancava o dente de uma paciente de maneira meio desajeitada, meio safada, que quase transforma a cadeira de dentista em cama. No Museu de Ciências de Londres, as cadeiras de dentistas são, pelo que se deduz, anteriores aos avôs de Charles Chaplin e W.C. Fields, e devem guardar semelhanças assustadoras com as cadeiras da Inquisição.

Elas estão na seção de equipamentos médicos do Museu, e lá também se acham as furadeiras usadas para fazer buraco no crânio das pessoas a fim de deixar saírem os demônios. Parece incrível, mas não é. Eis um uso que permanece atualíssimo: fazer buracos nos crânios alheios para saírem os demônios que, certamente, não precisam de chifres, de pata e de cheiro de enxofre, pois eles são vistos sob os mais diversos disfarces pelos fazedores de buracos, que são muçulmanos, cristãos, judeus, etc. As furadeiras foram para os museus pela pouca eficiência em comparação com armas bem mais sofisticadas para esburacar crânios, não resta dúvida.

O Museu de Ciências de Londres se situa no bairro de Kensington, oeste de Londres – informa o texto da internet já prevendo o número de turistas curiosos de verem tantos objetos que, bem ou mal, contam a história da humanidade através de um largo tempo. Não sei se algum leitor do Biscoito Molhado se aventuraria por Londres com a finalidade de visitar tal exposição, já que a nossa moeda perdeu a antiga força. Na Copa do Mundo de 1998 na França, um grupo de brasileiros batucou pagodes e comeu churrasco à beira do Sena – graças ao real, todos se recordam – mas poucos meses depois das eleições de outubro desse mesmo ano, quando a banda cambial deu lugar ao câmbio flutuante, ficou praticamente impossível para a turma da farofa viajar e fazer também uma churrascada com pagode à beira do Tâmisa. Evidentemente que essa não seria a motivação para os leitores do Biscoito Molhado irem a Londres além da visita ao Museu; eles, como nós, são simpatizantes das manifestações populares, mas não praticantes.  

Com os recursos escassos que temos, seríamos nós capazes de realizar uma exposição de objetos curiosos que contasse pelo menos a história dos últimos dez anos que envolveram as autoridades da marinha mercante brasileira? Eis uma idéia maluca que me ocorreu, e que só dá mesmo para desenvolver nestes meus dias ociosos de férias. Alguns desses objetos bizarros até seriam facilmente localizados para uma exposição nos moldes do Museu de Ciências de Londres:

1- Faixa de Miss Conteudoless. 
Dieckmann recebeu a citada faixa dos seus antigos colegas do Colégio Militar e a deixou exposta na sua sala, enquanto se comemorava o seu aniversário.
2- Flecha de Cupido
Todas as flechas que Cupido desferiu no coração do Diretor-Geral atingiram o alvo, com exceção de uma, que foi recolhida  pelo Djalma, que já se prontificou a cedê-la a nós para a referida mostra. Aqui, uma explicação: Cupido só errou uma flecha, porque o Cupido da Amazônia tem uma mira muito mais eficiente do que o da Grécia.
3- Flanela de apagar quadro negro.
Na época em que o Dieckmann, como coordenador-geral de Transportes Marítimos, promovia palestras, tivemos uma sobre a qualidade ISO. O palestrante, ao tomar conhecimento da falta de um apagador, solicitou uma flanela e uma garrafa de álcool. Depois de embeber a flanela com álcool e por-se a apagar o giz do quadro negro, ainda ouviu piadas que o comparavam a rebolativa Alcione Mazzeo da Escolinha do Professor Raimundo. Essa flanela ainda apagou quadros de muitas outras palestras e é fácil recuperá-la, mas a garrafa de álcool, não poderemos pegar para a nossa exposição, porque logo sumiu: um conhecido borracho da Coordenadoria de Arrecadação já bebeu tudo - dizem.    
5- Fronha Molhada
A fronha molhada apareceu no meio do Curso de Regulação Econômica, quando ele se pôs a imitar Keynes com trejeitos e voz fina:
- “Com gente aqui que morde a fronha, e o professor agindo desse jeito... sexualmente incorreto”.- comentou-se.
Bem, não será difícil nós conseguirmos aqui mesmo, seja com funcionário estatutário ou terceirizado, uma fronha molhada para a nossa exposição.
6- Latinha da cerveja Xingu bebida pelo Zé Maria
Os professores do curso acima citado, não deixavam de citar a distribuição de cerveja como o exemplo mais à mão de “dificuldade à entrada no mercado”, no caso, mercado de bebidas. Isso estimulava a sede da Luiza, que bradava no meio das aulas:
- “Professor, o senhor já tomou Xingu?... É cerveja pra macho”.
E, assim, Luiza levou um dia uma latinha para o Zé Maria, o professor que confessara nunca ter bebido “cerveja pra macho” até aquele dia.

Bem, nós poderíamos listar inúmeros objetos que contam a história das autoridades marítimas brasileiras, como as sapatilhas com que o doutor Barreiros dançou no nosso happy-hour em dezembro de 1999, mas cansaríamos os nossos leitores. Encerramos, então, por aqui, com a certeza, agora, de que essa exposição  seria factível.

















quinta-feira, 7 de julho de 2022

3122 - CC Zélia

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3003CC                          Data: 8 de outubro de 2022

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O CATADOR DE LIXO



Quando Collor assumiu e falou-se em feriado bancário, pensei logo em zerar minha conta no Bradesco, onde estava com o dinheiro aplicado no Overnight. A inflação era alta naqueles tempos e era a maneira mais simples de não se perder tanto, só que por diversos motivos, resolvi não mexer na aplicação. 


Decretado o feriado bancário, Collor aparece na Tv com seu pronunciamento anunciando o confisco, nos deixando com 50 pratas no banco. Imediatamente começaram discussões políticas no setor onde trabalhava em Furnas, alguém levara um aparelho de tv e acompanhamos tudo. 


Resolvi decretar o meu feriado, peguei minha CB-400 e fui para casa. Naquele tempo morava no Humaitá. Peguei a Visconde de Caravelas e ao virar à direita na General Dionísio me deparei com o trânsito interrompido por um caminhão de lixo. Aproveitei o espaço entre o caminhão e os carros estacionados e passei devagar, mas só que o catador de lixo que pesquisava na caçamba se assustou e começou a me ofender aos berros. 


Parei a moto, tirei o capacete e comecei a acalmar o cidadão, que dizia não ter medo de nada, que o irmão fora assassinado pela PM e coisa e tal. Claro que juntou gente para assistir àquele verdadeiro espetáculo, só que felizmente o rapaz foi se acalmando e terminou por me pedir algum para comer. 


Foi quando outro catador de lixo se aproximou e disse “Esquece, meu irmão, o homem tirou toda a grana dele, só ficou com cinquenta pratas no banco. Sai de perto porque ele vai acabar te pedindo algum”. Foi uma gargalhada geral! Pelo menos diminuiu minha frustração e fui rindo até chegar em casa.


3121 - D Passeio Completo

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3002D                          Data: 8 de outubro de 2022

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TRINTA E SEIS ANOS


Fiquei fora do Brasil durante 36 anos. Dividida entre as carreiras de médica e pianista, abandonei a primeira ainda no quarto ano da universidade, em benefício da música, o que desgastou o meu relacionamento familiar irremediavelmente, porque aqui todos gostariam de me ver sucedendo meu pai. Mas não voltei antes ao Rio porque não quis, pois, apesar dessa frustração, todos sempre fizeram de tudo por mim.


Eles me prepararam para a música clássica, seguindo o raciocínio natural da época - mulher deve tocar piano e ser professora primária. Quando perceberam, eu estudava medicina e continuava com o piano também. Em 1935, passei por um dificílimo concurso, que me dava o direito de me aprimorar na Europa, em Viena; nem pestanejei, tranquei a matrícula da medicina e prometi voltar...


Casei em fevereiro de 1936 com um maestro austríaco e fiquei. Foram dois anos esplêndidos, até a anexação à Alemanha. Então a regra passou a ser: quem está fora, não entra e quem ficou dentro, não sai. Minha família moveu céus e terras, getúlios, embaixadores, generais e marechais para obter um indispensável salvo-conduto. Pensei bem e fiquei lá mesmo, achando de verdade que não haveria a guerra que houve. Afinal, a história da noviça rebelde só seria contada muito tempo depois. Comecei a me assustar quando umas figuras um tanto sinistras resolveram perguntar aqui e ali por que eu me chamava Ester e de onde eu vinha. Ou bateram de cara com meu salvo-conduto, ou arranjaram ocupação, mas o fato é que me deixaram tocar piano em paz.


Quando me batizaram, era comum o uso de nomes ou antigos, ou bíblicos, como o meu, Raquel, Judith, nomes que eram usados muito comumente pelos judeus, que já tinham sofrido ao longo dos séculos, inúmeras perseguições, mas nada parecido, nem a mim tão próximo, com o que viria acontecer.


Entre 38 e setembro de 39, podíamos passear à vontade, desde que não passássemos dos limites da Alemanha e da Áustria, mas a guerra impôs restrições ao uso do combustível e ficamos muito mais em casa, meio sem o que fazer e meio sem o que comer, A mim pouco afetou, mas Karl perdeu 30 de seus 110 quilos com esse novo regime.


Atrapalha muito numa guerra dessas proporções não ter uma profissão de uso imprescindível, como médicos ou professores e comecei a refletir se não teria sido melhor se estivéssemos no Brasil. Essas minhas decisões impetuosas começavam a pesar na minha consciência, até então juvenil e aventureira. Acabei me oferecendo para trabalhar em um hospital próximo pelo resto da guerra e cheguei a repensar o tema da escolha da profissão, mas, quando acabou, voltei ao piano e foi certo, pois nunca mais passei por outra guerra.


Melhores tempos, melhores salários, um Porsche creme na garagem, um carro super resistente que rodou a Europa toda sem pedir refresco, nem agasalho. A cor bem clara era um contraste com as velharias escuras a que tínhamos nos acostumado.


Mas tudo dura e acaba e um dia Karl ligou o carrinho bem cedo e levou tudo que era dele. Ora, fiquei pensando, já lá estava há 22 anos e não haveria de ser agora que eu voltaria correndo para o colinho da mamãe... nada disso, continuei fazendo tudo igualzinho. De início, para me esquecer do verme, mas logo percebi que as coisas melhoravam pouco a pouco, e depois, muito a muito. Não é que o Karl só atrapalhava?!


Em 59 eu já tinha um Mercedes esporte, comprei usado, vermelhinho com bancos pretos, uma graça e, um dia, passei pelo Karl ainda com o Porsche, de pneu furado e já meio acabado; aliás, ambos. Empinei meu Ray-ban na ponta do nariz, ajeitei o lenço também vermelho e preto, enquanto jogava uma segunda para rosnar como só os carros alemães rosnam e passei acelerando.


Mal deu pra ver que o verme tinha um petizinho que estava com uma mamãezinha... aí a visão da criança mexeu comigo. Chegando em Florença em belíssimo dia, escolhi um cartão postal cheio de cores renascentistas e escrevi carinhosamente, me desculpando por não ter ajudado.


Fui trocando de Mercedes, sempre duas portas, sempre dois lugares, onde poucos sentaram até 72. Já era hora de me aposentar e podia muito bem rever a família. Cheguei gritando papai e mamãe no meio do Galeão, todo mundo olhando a grisalha senhora que parecia órfã a se reunir com os velhinhos.


Fomos para casa no Itamaraty do papai. Fiz questão de decorar o nome pomposo do carro, pois ali mesmo já começava a sentir saudade de casa. Era o tempo do milagre brasileiro, dos reflexos do tri-campeonato e do fim da guerrilha urbana, mas nada disso me iludiu, peguei um Boeing dois meses depois.


Meus 36 anos musicais terminam aqui. Teve de tudo, guerras e guerrilhas, promessas em vão, correrias e investigações, estagnação, meditação, muita música, Porsches, Mercedes e Itamaraty. Penso nas minha sobrinhas no velhor sofá vendo novela, na mesma casa em que tramei, solitária, um enredo difícil de engolir, fácil de fazer, delicioso de viver.




quarta-feira, 6 de julho de 2022

3120 - Osama de araque (Reedição)

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 2124                                                  Data: 27 de julho de 2004       
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E TUDO COMEÇOU COM UM ESTALO...


Tudo começou com um bang; direi um “little bang” para não confundir com o “big bang” e o meu texto ficar hiperbólico. Escutei um estalo vindo de não sei onde e quando a imagem do monitor de vídeo congelou, não tive mais dúvidas: o barulho viera do computador. Quebrara uma pequena parte do suporte onde o  resfriador é fixado (o resfriador é conhecido por “cooler”, mas como já excedi a minha cota de estrangeirismos neste parágrafo, sai o “cooler”). Esse estalo já ocorrera antes, há uns cinco meses, quando o computador ainda se encontrava na garantia técnica de um ano, mas como eu não queria perder tempo, mobilizei um sobrinho, entendido no assunto. Ele logo descobriu a causa; com o rompimento dessa tal parte do suporte, a ação do resfriador ficara comprometida e, como conseqüência, ocorrera um superaquecimento que congelou a imagem. Aí está um paradoxo da era cibernética: um superaquecimento provoca um congelamento. Antes fosse apenas um paradoxo, mas o tal aquecimento exagerado acabava com a umidade do Biscoito Molhado que, assim, chegaria aos nossos leitores já esfarelado. Tínhamos de tomar, então, providências urgentes.

Esse meu sobrinho, vindo das lonjuras de Jacarepaguá, aparecera num domingo, logo num domingo, dia de lojas especializadas em informáticas trancadas. 
- “Não me diga que o jeito é tocar um tango argentino.” - disse para ele que não conhecia o poema do Manuel Bandeira, e muito menos o médico que descartou o pneumotórax.  Não conhecia, mas tinha a imaginação dos improvisadores, e encontrou um jeito. O jeito foi a velha cola Superbonder; ele espremeu um tubo com a dita cuja, e restituiu a pequena peça que se destacara do  suporte para o seu lugar. Ficou, assim, restituída, neste periódico, uma razoável umidade para amenizar a aridez do dia-a-dia.

Passaram três, quatro, cinco meses, e veio o “big bang”... “little bang”, para não contradizermos o início desta edição. Acionei de novo o mesmo sobrinho, mas com uma advertência: não apareça no domingo das lojas trancadas. Apareceu num sábado, desparafusou o computador, e foi direto ao suporte do resfriador. E mostrou-me o dito  cujo como um troféu porque a pequena parte que colara se mantivera firme e irremovível, o que arrebentara foi outra parte do suporte. Fomos, em seguida, para uma loja especializada onde nos explicaram que o problema era de fabricação, e como não existe o “recall” dos computadores, como o dos carros, nós mesmos tínhamos de resolver o problema. E o problema consistia no fato de o suporte pertencer à placa-mãe, que é de um fabricante,  e o “cooler”, que o arrebenta com a sua pressão, pertencer a outro fabricante.

Outra coisa que eu aprendia: no mundo da cibernética, quando entra a placa-mãe no meio, a coisa também fica feia.
- “Se o amigo colocar um suporte e um cooler do mesmo fabricante, no caso, da INTEL, com quem trabalho, o problema fica resolvido, teoricamente, “timelife”, pois a enorme pressão diferenciada do  cooler sobre o suporte, que vinha acontecendo, cessa.” - garantiu.

Levei para casa o novo suporte para o computador, mas ficou faltando o resfriador que, sendo do mesmo fabricante, evitaria  a incompatibilidade de gênios;  este só chegaria à loja três  dias depois, ou seja, na terça-feira. 

Depois de instalado pelo meu sobrinho o novo suporte  do meu computador, eu lhe pedi todas as informações necessárias para se conectar os mais diferentes cabos e fios à torre do computador, pois na terça-feira, eu não o teria por perto. Como um aluno atento, não só ouvi essas informações como as anotei.

Terça-feira, chovia a cântaros. Até tive de tomar cuidado para o biscoito não sair encharcado. E como o novo suporte dava conta do recado, ainda que o cooler fosse o antigo, o incompatível, adiei a ida à loja. Quarta-feira, saio mais cedo do trabalho, sou chamado de maluco porque não esperei, numa esquina, um carro que se eternizava na faixa  preferencial, e entrei apressado em casa. Tirei um cabo conectado à torre, tirei outro, mas o terceiro não saía; sem perda de  tempo, removi os fios do telefone e da internet. Só faltava agora o tal cabo. Ele insistia em ficar onde estava. Outra coisa que eu aprendia: em cibernética, arrancar é tão complexo quanto colocar.
- “De quê diabo é este cabo?...” - perguntei-me.
Era do monitor de vídeo. 
- “Tem parafusinhos por aqui?...”
Olhei, e não encontrei nada.
- “Mas por que, então, isso não sai?...”

E puxei. O que aconteceu depois fez me sentir um Osama Bin Laden que atacou a sua própria torre. Com o cabo que puxara, arranquei uma gradezinha, rompi uns pinos de encaixe e esgarcei uma vascularização de quinze fios de conectores alocados em quinze furinhos. Na loja, o vendedor do cooler expressava o seu espanto:
- “Mas como você fez isso?...”
- “O diabo da pressa...” 
- “Mas por pouco você não comprometeu a placa-mãe.” 
Comprometer a placa-mãe, coisa seríssima em informática...
- “A placa do monitor... Eu vou ver se salvo.” 
- “E os fios que não entram nos furinhos...” - falei.
- “Rapaz, o trabalho que isso vai dar...” - crispou o vendedor, também técnico de informática, o  rosto, mas sempre falante.
- “Para a minha ação de brucutu, só um trabalho de ourivesaria para dar jeito” - reconheci, mesmo sabendo que isso redundaria num orçamento mais elevado. 

Bem, o trabalho de ourivesaria aconteceu, o novo suporte e o novo cooler vivem aparentemente felizes, e eu já me prometi nunca  mais mexer  em qualquer torre, mesmo que seja de jogo de xadrez.