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O BISCOITO
MOLHADO
Edição 5271SX Data: 16 de março de
2016
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIII
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Finalmente Florença!
Muitos anos se passaram até que eu
refizesse o roteiro que meu pai, o barítono Paulo Fortes, cumpriu em 1954. Em
2013, eu e Beth visitamos, enfim, a Florença sempre mencionada em suas
conversas.
O relógio marcava 6 horas da manhã quando nosso trem parou na
plataforma da estação de Florença. Doze horas de viagem, desde Viena.
Cansativa e desconfortável, por nossa culpa, devo dizer. Beth e eu
conseguimos transformar uma cabine ampla (e caríssima!) , planejada para
propiciar aos seus ocupantes uma noite de sono repousante, num mafuá de malas e
sacolas de compras. Lembro a expressão do oficial encarregado do nosso vagão,
quando se prontificou a montar a cama gigante que ocupava nosso latifúndio.
"Impossibile!" foi a primeira palavra que proferi na língua
italiana. Nossa bagagem ocupava toda a cabine. Permanecemos a noite inteira
sentados, lamentando os exageros que havíamos cometido em Londres, Berlim,
Praga, Salzburgo e Viena.
A tarefa, agora, era conseguir um táxi. Tentando disfarçar
que o certo, mesmo, seria contratar um caminhão. Nossa vítima não demorou a
aparecer:
" Hotel Paris ! Via dei Banchi 2 ! ". Bingo ! eu
havia
proferido minha segunda expressão em italiano. O motorista
não disfarçou achar uma idiotice eu fornecer o endereço do hotel. Até porque a
distância percorrida entre a estação ferroviária e a portaria do mesmo não
passava de uns cinco quarteirões. Isso, com juros e correção monetária. Nas
andanças dos dias posteriores descobrimos que, descontada a sagacidade do
motorista, essa distância era ainda menor.
Seis e meia da manhã do dia 10 de maio de 2013. Atrapalhamos
o sono do recepcionista do Hotel Paris, que se vingou informando que, por uma
deferência muito especial, poderíamos ter acesso ao nosso apartamento a partir
das 10 horas.
Muito antigo o tal Hotel Paris. Para
chegar ao nosso quarto a prescrição era tomar o elevador, apertar o quarto
andar e descer meio lance de escadas. Para chegar ao café da manhã, pressionar
o térreo e subir outro meio lance de escadas. Leonardo da Vinci não participou daquele
projeto.
O recepcionista ficou de saco cheio de ver aquele casal de
brasileiros ocupando a recepção do hotel e decidiu liberar nosso quarto às
9:30.
Quarto antiguinho, meio barro, meio tijolo. Muito grande, o
que causava um tremendo problema. Para se assistir sua mínima televisão,
instalada numa das extremidades do recinto, impunha-se ficar de pé diante dela.
Era o que eu fazia. Uma profusão de importantes jogos decisivos de vários
torneios europeus, sempre transmitidos à noite, levavam a Beth ao desespero.
Chegamos ao tal quarto mortos de cansaço, merecedores de um
sono reconfortante. Mas eu levara décadas para conhecer, finalmente, a Florença
que tanto encantava meu pai. Não havia um minuto a perder, até porque eu
estava informado de que nosso hotel estava "colado" a grandes
atrações do centro histórico de Florença.
Dito e feito. Uma caminhada de não mais do que três
quarteirões e estamos diante do "Duomo". Da "Porta do
Paraíso". Do "Campanille de Geotto". Lembrei-me das cartas de
meu pai, que guardo há quarenta anos, onde ele descrevia essas maravilhas.
A praça fervilhava de gente. Os bares e
restaurantes estavam super-lotados. De repente, num bar muito simpático, fica
vaga uma mesa bem em frente ao "Duomo". Poucas vezes tomei uma
cerveja com tamanha sensação de merecê-la até a última gota.
Dia 11 de maio de 2013. Chegamos ao ponto culminante de
nossa viagem. Dia em que eu e Beth combinamos refazer os roteiros de Paulo
Fortes. Em especial conhecer a " Pensione Argentina ", onde ele se
hospedou durante todo o período em que cantou em Florença. E conhecer o Teatro
Comunale, palco de suas apresentações na cidade.
Consultamos o mapa. A conclusão foi a de que a
"Pensione" não ficava muito perto. Decidimos ir a pé. Tomando como
referência o rio Arno.
Foi, realmente, uma boa caminhada. Deixamos para trás a
agitação do centro histórico e, à medida em que caminhávamos, encontramos uma
cidade progressivamente mais calma, mais deserta. Pergunta daqui, pergunta
dali, chegamos finalmente à Via Curtatone 12.
A "Pensione Argentina" havia sido promovida a
Hotel Argentina". Dos papéis amarelados das cartas de Paulo Fortes
consta o telefone 25-408. Não me animei a fazer essa ligação.
O prédio, externamente, até que é bacana, imponente. No
interior o que se vê é um hotel simples, aparentemente decorado com objetos
comprados na feira de antiguidades da Praça XV. A promoção de "Pensione"
a "Hotel", tudo indica, não resultou em "up grade" nas
instalações do estabelecimento. Olhando em volta, descubro uma placa que atesta
ser o Hotel Argentina um três estrelas. Mesma pontuação do nosso Hotel
Paris. Fica claro que rola um "pixuleco" na Secretaria de Turismo de
Florença.
O recepcionista do hotel tinha alguma coisa a ver com o Jim
Carey. Pareceu-me tão aloprado quanto. No meu italiano de quinta categoria
tentei explicar o motivo de minha visita: "Meu pai, um barítono
brasiliano, cantou várias óperas em Florença, no século passado. Durante
esse período, aqui permaneceu hospedado...". Jim Carey, aflito, explicou
que o hotel havia mudado de dono, cerca de oito anos atrás, Achei que seria
didático mostrar para o sujeito algumas cartas de meu pai, em papel timbrado da
"Pensione". Junto a esse dossiê, uma foto de Paulo Fortes, com a
vestimenta de "Il Cadi Inganato", de Gluck, distribuída em 1954 pelo
Teatro Comunale. Jim Carey examinou a foto com atenção e comentou: "Esse
senhor não tem aparecido por aqui ultimamente...
Beth
não gostou do que eu disse para o sujeito:
"Graças
a Deus..."
Cumprida a etapa de conhecer a
"Pensione Argentina", nosso destino seguinte era o Teatro Comunale de
Florença. Sua inauguração aconteceu em 17 de maio de 1862. Era conhecido como
Politeama Fiorentino Vittorio Emanuele. Nele se acomodavam 6 mil pessoas
sentadas (!). O teatro pegou fogo, tendo sido reaberto em 1864. Ganhou um teto
em 1882. Em 1911 nele foram instalados aquecimento e eletricidade. Em 1930 foi
estatizado e passou a se chamar " Comunale ". Nos dias de hoje é
mais conhecido como "Teatro del Maggio Musicale Fiorentino". Esse
festival confere ao Comunale
posição de destaque entre os palcos mundiais da música clássica.
A distância que separa a "Pensione Argentina" do
Teatro Comunale me fez entender a opção de meu pai por um hotel meia-bomba.
Dois quarteirões, se tanto. Esperto esse tal de Paulo Fortes... Sempre
lembrando, além disso, que ele não cogitava gastar sua escassa verba de viagem
com luxos ou futilidades.
Chegamos ao Comunale pela porta dos fundos. E nos deparamos
com uma tremenda agitação. Dezenas de pessoas empunhavam faixas e cartazes,
protestando contra a administração do teatro. Reclamavam da falta de verbas
para a cultura, dos baixos salários, da programação incipiente do teatro. Nada
diferente do que sempre ouvi meu pai comentar a respeito do Municipal do
Rio, ao longo de meio século de carreira. Tracei imediatamente um paralelo
entre aquela agitação e as mazelas da Orquestra Sinfônica Brasileira. Eu estava
completando quatro anos na Direção Executiva da Orquestra. repletos de tensões
e grandes aborrecimentos.
Rapidamente cheguei à conclusão de que em Florença ou em
Pindorama tudo deve ser muito parecido. Aqui é grande a quantidade de
empresários, financistas, gente ligada a governos ou coisa que o valha,
dispostos a assumir cargos em instituições culturais. dispostos a salvá-las da
morte certa. Do caos administrativo. Da bancarrota inexorável. Farão isso
concedendo-lhes minutos do seu preciosíssimo tempo. Prontos a contribuir com
sugestões geniais que, no dia a dia do mundo dos negócios, são avaliadas a peso
de ouro.
Seu desprendimento é comovente. Agarram-se a esses cargos
durante anos a fio. Não entendem de arte, muito menos de música ou de músicos.
Mas querem colaborar com essas causas nobres a custo zero. Comove poder contar com
tanta sabedoria, com tanta proficiência.
Injusto lembrar sua capacidade de cometer as maiores
lambanças, arrumar terríveis confusões. Tudo em nome da cultura. Em nome
da arte.
Contornamos o grupo de manifestantes à procura de uma porta
que desse acesso ao Comunale. A portinha dos fundos, a entrada dos artistas,
que deve existir em todos os teatros do mundo. Seja no Colon de Buenos Aires,
no Metropolitan de Nova Iorque, no Comunale... Certamente, todas são muito
parecidas. Pela do Municipal do Rio devo ter passado mais de mil vezes...
Na recepção do Comunale está sentado um cidadão que não é
exatamente um campeão de simpatia. Conto minha historinha, no meu italiano
impublicável: "Mio padre... un barítono brasiliano... ha cantato in questo
teatro..."
Com falta de saco total, o tal sujeito pelo menos me deixou
falar. Mas deu a conversa por encerrada com a informação : "daqui a pouco
vai começar o ensaio geral da orquestra. A entrada não é permitida. Impossível
visitar o teatro nesse momento "
Saímos desanimados cruzando com nossos manifestantes. Decidi
tentar uma última cartada. Dirigi-me a um grupo que me pareceu simpático,
indagando se haveria uma hora própria para visitar o teatro. Afinal, "Mio
padre... Barítono brasiliano..." Deu certo! Meus agitadores eram músicos
da orquestra do Teatro Comunale. Braziliani? Estivemos no Rio de Janeiro
no ano passado e tocamos naquele belíssimo teatro que fica perto do mar...Teatro
Municipal? ... É esse mesmo!..." "Seu pai cantou aqui no Comunale?
Ele era do coro?"
Eu havia chegado perto do gol. E o goleiro saíra para
lanchar. "Meu pai cantou primeiros papéis! Cantou óperas muito especiais,
entre as quais tal, tal e tal... Foi regido pelos Maestros Franco Ghione,
Bruno Bartoletti, Vittorio Gui... Finalmente, corri para a torcida sacando
do meu envelope as fotos publicitárias do Comunale, com Paolo Fortes (das fotos
consta Paolo, e não Paulo) devidamente paramentado para cantar "Il Conte
Ory", "La Fata Malerba", "La Granceola" e por aí vai.
Gelo quebrado, os músicos indagam: "Mas o que vocês
querem ? Conhecer o teatro ? Isso não é problema. É só entrar com a gente.
Daqui a minutos temos ensaio com o Maestro Zubin Mehta para o concerto de
domingo. Vamos abrir um camarote para vocês.”
O antipático da portaria viu-se na contingência de fornecer
ao grupo a chave do camarote. Assistimos, emocionados, o grande Zubin Mehta
ensaiar a orquestra do Comunale na "Sagração da Primavera". Cinquenta
e nove anos depois da estreia de meu pai em Florença, eu conhecia o teatro em
que ele alcançara marcos importantes de sua trajetória artística.
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