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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

3142 - Memória de Elefante

   

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2129                                Data: 03 de Agosto de 2004       

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LEMBRANDO O QUE SE DEVE ESQUECER...


Não era permitido a ninguém entrar na Capela Sistina com qualquer material de anotação, porque era terminantemente proibida a divulgação do Miserere da missa de Allegri; pois Mozart, com quatorze anos, dirigiu-se a tal igreja, ouviu a missa e, chegando no seu quarto, em Roma, reproduziu a missa nota por nota. Possuía ele a chamada memória de elefante. 

Falando em elefante, vem-me à mente a Belinha que, na época do espelho no banheiro das mulheres do Departamento de Marinha Mercante, cismara que o dito cujo, por poderes mágicos imponderáveis, a engordava. Belinha, no entanto, longe estava da silhueta ou do talhe de um elefante; e estava, principalmente, ainda muito mais longe da sua memória. Depois de muito reclamar dos seus esquecimentos, comunicou a seus colegas de trabalho, incluindo nós, que passara a tomar remédios para a memória. Passaram duas, três semanas, e soubemos que ela, depois de  esquecer por diversas vezes de tomar o tal remédio para a memória, abandonara o tratamento. Isso aconteceu antes do curso de Regulação Econômica da Fundação Getúlio Vargas que se iniciara em novembro de 2001 e se estendeu até julho de 2002.

Num dos módulos mais interessantes desse curso, o professor mal olhou para a Belinha e deteve-se nela, que, sob o seu olhar de verruma, mostrou-se constrangida e desnudada. O professor revelou-lhe, então, que ela fora sua aluna, e ainda lhe disse em que ano e em que matéria. Fora o primeiro e único caso, dentro de uma sala de aula, que eu testemunhara na vida,  de um professor que se lembrara do aluno, e não o inverso. É verdade que o professor era o Fernando Pinto, o lembrudo, e a aluna a Belinha, a Esquecidinha. 

Ele possuía um método mnemônico que deixava os seus alunos estarrecidos e, com a nossa turma de 25 alunos, não foi diferente. Colocou o seu método mnemônico em prática logo depois de ministrar uma prova de Orçamento Público de um outro professor – esse fora o seu primeiro contacto conosco. Antes de dar início à sua primeira aula, propriamente dita, dirigiu-se a um por um dos vinte e cinco alunos citando sem um erro o nome de cada um; decorou os nomes  depois de receber as provas de Orçamento Público encerradas em tempos distintos, olhar para nós, e nos pedir para confirmar o nome escrito no cabeçalho. Do estarrecimento, todos passaram ao entusiasmo e daí à admiração. Belinha, que vibrava, quase lhe pediu o nome do remédio que tomava. Ele, porém, não se alongou em explicações; declarou apenas isso:

- “Eu trabalhei desde os quatorze anos com o meu pai, e ele me aconselhava a não anotar nada.”

Muitos anos antes do curso de Regulação Econômica, mais precisamente em 1981, no curso de inglês do Brasas, na avenida Graça Aranha, encontrei um aluno que se lembrara de mim da escola primária; além de guardar a minha fisionomia, eu tinha onze anos de idade, ainda citou o nome dos meus dois irmãos, da mesma escola, que tinham dez e oito anos. Sem dar-me tempo para felicitá-lo, acrescentou:

- “Para umas coisas, a minha memória é muito boa, mas para os estudos é uma merda.”

Na celebração dos oitenta anos do crítico literário Agripino Grieco, ele declarou numa entrevista: “infelizmente a minha memória é tão boa que eu até me lembro dos versos do Osvaldo Orico”.  O problema da boa memória é que ela não é seletiva; ainda assim é fundamental para quem escreve lembrar-se até do que se deve esquecer. 

O biscoito molhado, não o nosso, mas o de Marcel Proust, é o exemplo mais significativo na literatura universal da memória involuntária. Ao contrário da memória voluntária, que obedece ao comando da consciência, Proust distinguia a memória involuntária como o despertar prodigioso e cheio de significados de incidentes passados da  vida tão logo a nossa sensibilidade seja atingida. Ao degustar, já adulto, um biscoito madeleine molhado numa xícara de chá – o que costumava fazer quando criança -  a memória afetiva de Proust se aguçou, e foi a razão principal de ele sair em busca do tempo perdido. 

Hemingway, que era de caçadas na África, touradas na Espanha, pescarias em  Cuba, ou seja, um Proust às avessas, sabia da  importância da memória para escrever e parece que um dos motivos do seu suicídio foi senti-la terrivelmente prejudicada com a doença mental que o atacou.

Já ia terminar a edição de hoje do Biscoito Molhado por aqui quando me lembrei que, há algum tempo, Hemingway foi citado como exemplo do uso exagerado de vírgulas. Victor Hugo, uma instituição francesa, teve brigas homéricas com o seu editor belga, que cismava de acrescentar vírgulas aos seus textos. Quanto a Voltaire, considerava as vírgulas, também pela aparência, uns vermes.  A história da pontuação está caindo no esquecimento e, por isso, não vamos colocar ainda o ponto final. Antigamente, a leitura em voz alta era essencial para entender-se o que estava escrito, e além disso, eram poucos, também, os que sabiam ler. 

No século II A.C, Aristófanes de Bizâncio consolidou o alfabeto grego e introduziu o primeiro sistema de pontuação. A igreja católica representou um grande avanço para a pontuação e os copistas da Bíblia inventaram marcas sendo a mais comum a maiúscula em vermelho, de onde se originou a palavra rubrica – ruber (vermelho) em latim. No século VIII D.C, quando as palavras foram separadas por um espaço em branco, a pontuação adquirir mais importância sintática e semântica. Mas foram os editores, depois do surgimento da imprensa, que passaram a exigir a padronização das marcas da pontuação, enfrentando algumas relutâncias, como a de Voltaire que dizia não se preocupar “esses sinais pequenos que parecem vermes.” Como  voltamos a Voltaire, é hora de colocarmos o ponto final em toda esta falta de memória.

  











3 comentários:

  1. E a vírgula tornou-se manifesto de contestação

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  2. Hobbylandia, templo de adoração e consumo, quantas mesadas deixei lá! E segui atrás, quando se mudou para o edifício Avenida Central.

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