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O BISCOITO MOLHADO
Edição M2 Data: 9 de agosto de 2023
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MEU IRMÃO DE COVENTRY
Era para ser uma produção destinada ao Dia dos Pais; em uma conversa dois meses antes com o Jason Vogel, delineamos um passeio por Santa Teresa, com a Carolina dirigindo o meu carro.
Uma interessante transposição, pois em vez de eu degustar alguma maravilha mecânica, como seria de se esperar para um pai no Dia dos Pais, eu é que ofertaria a minha maravilha de 50 anos de companhia.
Apesar do sabor estranho, topei na hora, afinal faço semanalmente um passeio curto em Santa Teresa, com a finalidade de não deixar as peças se acostumarem com a imobilidade, pois carro antigo preguiçoso é melhor não ter. Nesse dia mudaríamos o motorista, estava de bom tamanho.
O próximo passo era acertar a agenda com a Carola, que estava em final de gravação de uma novela, o que costuma complicar. Mas a novela acabou e antes da data limite em que o Jason deveria dar como finalizada a produção.
Jason é meticuloso, sabe muita coisa de automóvel antigo, mas, longe de pretender saber tudo, percebe que todo dono sabe daquele modelo, daquela marca, coisas que os livros não ensinam. E era de se esperar que, tendo comprado o carro em 1972, eu teria que saber muita coisa, ainda mais tendo levado o carro até Manaus e o trazido de volta; eu tinha que ter história pra contar. Mas eu falei carro?
Chamei o XK de carro? Claro que é, mas é algo mais, virou um irmão, ligeiramente mais moço do que eu em 9 meses e meio; e, dos setenta e poucos anos de cada um, já ultrapassamos os cinquenta juntos, um jubileu de ouro frequentemente comemorado. Como irmãos, já brigamos e fizemos as pazes, negócios de família.
Numa história dessas, em algum lugar tem que aparecer o começo. Eu já ganhava como engenheiro em 72, quase formado e meu salário era 5000 dinheiros da época. O XK (prometo falar dele como carro já-já) era de um sócio do Veteran, Edson, super simpático e atencioso com a nossa então "ala jovem" e me contou um dia suas dificuldades com o carro. Contou pra mim porque eu já tinha tido dois Jaguar e, certamente, saberia entender suas agruras.
De agrura em agrura, ele acabou se aborrecendo seriamente, deu um chute no carro e me ofereceu por 7000; topei desde que o motor tivesse solto. Fui, com meu amigo de jardim-de-infância Francis, que depois virou Tom Murray, no estacionamento da Rua Camerino, onde o XK, vermelho e sujo, estava em repouso; eu levava gasolina e bateria, e em cinco minutos o felino estava ronronando. Fechei o negócio, só faltava levar pra casa.
Mas fala-se em XK, Jaguar e não se conta duas palavras sobre esse felino enigma? Antes da 2ª Guerra Mundial, em Coventry, havia uma fábrica de automóveis chamada SS; em 1935, fizeram um novo modelo e, à cata de um nome interessante, o batizaram de SS Jaguar. Logo logo, o nome SS ficou ligado demais aos inimigos dos ingleses e rapidamente cortaram o SS, ficando só Jaguar. Durante as hostilidades só se fabricava munição, avião, mas nada de automóvel e os técnicos principais da Jaguar, com tempo de sobra, desenvolveram um motor com tudo o que pudesse haver de mais moderno, entre um bombardeio ou outro.
Terminada a guerra, a Jaguar retomou a produção do sedã anterior à paralisação, como fizeram todas as fábricas do mundo e desenvolveu seriamente o tal motor moderno. Entretanto, como faziam sucesso com as vendas desse sedã, acharam que seria muito arriscado oferecer o novo motor e perder o mercado, caso não desse certo. Fizeram então um carro de dois lugares, um carro esporte com produção limitada, que poderia ser interrompida sem maiores sequelas. Ou seja, não faziam muita fé no projeto.
Mesmo assim, capricharam no desenho e, no Salão de Londres de 1948, foi apresentado como XK-120, onde o X era de experimental, o K substituia o número sequencial do projeto e o 120 correspondia à velocidade máxima, de 120 milhas por hora, um nome sem maiores apelos, portanto. Diz-se que houve uma histeria coletiva em torno do recém nascido, o que encorajou a fábrica a correr com a produção, sem tempo para rebuscar um nome. Era um tempo em que sobrava alumínio (das sucatas de aviões) e faltava aço, as fábricas precisavam racionar seu uso, pois só teria aço quem exportasse. Por tais motivos, toda a carroceria dos primeiros XK era de madeira e alumínio. Uma panela sem cabo.
O XK-120 foi justamente um sucesso na exportação para os Estados Unidos, muitos foram vendidos para os ex-combatentes americanos que, enquanto estavam aquartelados na Inglaterra, se maravilharam com os carros esporte ingleses, como o MG. Logo a fábrica pode ter todo o aço que quisesse e aumentou a produção, atingindo números de venda jamais esperados para um modelo esportivo.
Mas chega de papo técnico, que é chato pra quem não entende e superficial para os iniciados.
Volto ao "levar para casa". Mais uma vez com a ajuda do Tom Francis Murray. Sem muita dificuldade, alimentamos os carburadores por gravidade, o Tom segurando um botijão de 5 litros sobre o painel, o carro pegou e chegamos tranquilamente em casa antes de acabar a gasolina e o ano de 1972, embora eu não tenha dados mais precisos. Encontrei o defeito, que, de tão simples, me obriguei a esconder do amigo Edson...
Usei o XK, fui tomar sorvete no Moraes, andei no Sumaré meio na terra, meio no asfalto, retirei umas "melhorias" estéticas no capô e nas saias traseiras, achei um estofamento de couro vermelho debaixo do plástico preto - essa é embatucante, pois o carro nasceu verde, com estofamento verde - vai ver um dono anterior trocou de estofamento com outro dono de XK, porque era um estofamento original. Como saber?
Casei, saímos da Igreja nele, depois mandei o carro de navio para Manaus e fui várias vezes ao Estaleiro com ele, onde o pessoal chamava carinhosamente de carro do Batman; não sei se a semelhança era com o Batmóvel, ou se a coisa era comigo.
A volta de Manaus foi épica: com Maurício Piquet, meu chefe e amigo, arranjamos três vagas com um armador que gostava de nós e que levava carretas sobre suas chatas entre Belém e Manaus. Cada chata era amarrada a contrabordo de um navio e lá fomos nós, eu e Maurício, a bordo do navio e o XK, mais o meu 2CV e o Chevette do Maurício bem travados no convés liso da chata.
O navio chamava-se Almirante Alexandrino, que foi um importante oficial da Marinha do Brasil, tendo sido responsável pela modernização da frota na primeira década de 1900. Na internet acha-se tudo e o Alexandrino de Alencar foi revoltoso na Revolta da Armada em 1893, contra o Floriano Peixoto. Como tudo passa por aqui, os sucessores do Floriano empastelaram seu passado e reabilitaram o nosso Alexandrino que virou o Ministro da Marinha mais longevo da História do Brasil ( 4 presidências) e também a mais longa rua de Santa Teresa, onde residia o almirante.
É necessário dizer que o navio foi construído em 1900, de casco todo rebitado, já tinha motor diesel e não mais a máquina a vapor original. Era o Cap Roca da Hamburg Süd até 1922, quando foi oferecido ao Brasil como reparação da Grande Guerra, a primeira mundial que então se chamava assim, pois ninguém sabia que haveria a Segunda.
Após alguns anos sem maiores melhorias, reformei o carro, voltando ao verde por fora e verde por dentro dos seus dias de 1950. O verde original da pintura não era muito interessante e havia boatos de que desbotava bastante, de modo que adotei o verde-inglês de competição, um verde garrafa muito bonito. Era um tempo em que carro de corrida defendia a Pátria e os alemães eram prateados, os franceses azuis e os italianos, vermelhos. Nós, brasileiros usávamos o amarelo, mas como não sou piloto, optei pelo verdão.
O motor, que era meia boca, foi refeito na lendária Rio-Londres da Rua Assunção, então a meca dos carros ingleses e, fora uma troca de cabeçote feita nos anos 2000, é ele que ainda puxa o XK com boa disposição.
Marcamos o dia, o Jason chegou com a equipe bem cedo para discutirmos o trajeto e onde posicionar as câmeras. Na hora justa, chegou a Carolina, que entrou em casa para pegar uma tangerina; ali, na rua mesmo, enquanto se preparavam os microfones e a sempre presente GoPro, entre um copo d' água e outro, bateu-se um papo gostoso, onde a risada prevalecia, quase sempre em torno da minha ultra-super-avaliada severidade e de como todos os filhos burlavam regras, leis, regulamentos e pulavam muros, o típico papo normal do Dia dos Pais, quando eu sou o pai.
Severidade derrubada pelos mesmos muros, ali quietos, mas testemunhas caladas de um tempo sem câmeras de sgurança de alta definição, bem que eu queria ver isso agora...
Partimos então de acordo com o script, saí dirigindo até o Curvelo e eu havia combinado com o cinegrafista uma arrancada logo após o Pimenta. Deu tudo certo, cabelos esvoaçaram e, como a Carola de nada sabia, passou para a câmera uma impressão real de surpresa, que alguns interpretaram como pânico. Eu conheço cada uma das muitas cicatrizes da nossa atriz e sei bem que é difícil apavorar a figura; na segunda arrancada, combinando o vento e o som do motor, mereci da gentil senhora comentários sobre torque e carro de corrida... acho mesmo que eu é que fiquei surpreso.
Aí cedi o assento para a motorista que saiu como se sempre dirigisse um Jaguar... nenhum tremelique, nem insegurança, fazendo sinal com o braço como se estivesse em 1952 e viemos batendo papo como se fosse a coisa mais natural do mundo... sucesso total, diria o Rasta!
Na chegada, mais conversa sobre o bonde que apareceu de papagaio de pirata e sobre a experiência, um papo entremeado de frases antológicas como: "Não tem como eu não achar bonito, eu vejo este carro desde que eu nasci!". Saiu assim mesmo, com a naturalidade da verdade rara, sem acréscimo, sem retoque, sem maquiagem.
E eu, de boca aberta.
Postei em 8 de setembro, mas a data de 9 de agosto fica em homenagem ao aniversário do Jaguar. E também do Djalma.
ResponderExcluirVi ontem, dia 8/09 , na Globo a repetição do vídeo, fazendo sucesso do Jaguar, que por sinal conheci, só não fui convidada a dirigir. Gostei muito da saga do pai com filha! e até achei ela uma conhecedora da marca. Deixou o pai perplexo. Esses filhos!!!!!
ResponderExcluirAnônimos são o terror dos blogs...
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