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O BISCOITO MOLHADO
Edição 1551 Data: 09 de agosto de2022
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O NAMORADO DE JOVANKA
Desses vídeos que circulam na internet pouca coisa se aproveita e a gente respira quando um dos bons aparece. Foi o caso do vídeo do jornalista Boris Feldman, sobre a exposição de automóveis antigos de Araxá, de julho de 2022.
Iam se seguindo automóveis maravilhosos, escolhidos pelo dedo do experiente apresentador e, entre eles, um Cadillac 75 Limousine, daqui do Rio de Janeiro, de 1960, conversível e preparado para desfiles, que foi usado pelo Marechal Tito, presidente-ditador da Iugoslávia.
Era de um tempo em que os presidentes usavam conversíveis enormes, para irem recebendo as saudações do povo e essa moda foi interrompida pelo assassinato de John Kennedy, em 1963. De lá pra cá, os aparatos de segurança prevaleceram sobre os marqueteiros de campanha e a turma só se desloca em carro blindado – ou de motocicleta.
Lembrando do Tito, repassei o vídeo para meu amigo Slobodan Vieira Mithovic, brasileiro, de família sérvia que imigrou para os Estados Unidos em 1947 e de lá para o Brasil, onde Slo, ou Islô, nasceu em 53, ou 54. Eu sabia que um tio de Islô tinha sido partisan iugoslavo, do Reino da Sérvia, Croácia e Eslovênia e tinha combatido os alemães e os croatas, usando armamento fornecido pelos soviéticos que davam suporte ao líder partisan, o futuro Marechal Tito.
Um pouco da História cai bem para explicar um pouco esta intricada colcha de retalhos existente na região. O Reino, que já se chamava Iugoslávia desde 1918, foi invadido pelos nazistas em abril de 1941, através da Croácia, que fazia fronteira com a Hungria, então aliada dos alemães. Estes imediatamente criaram o Estado Independente da Croácia, um Estado fantoche entregue ao partido nacionalista Ustasha. Uma maneira esperta dos alemães foi darem poder a uma facção minoritária que se opunha à maioria sérvia, controladora dos rumos políticos do reino e, dessa maneira, controlar todo o reino sem usar muito do efetivo de soldados alemães. O Ustasha espalhou o terror pelo país matando indiscriminadamente sérvios, judeus e ciganos. A reação sérvia veio com apoio dos soviéticos e constituiu o partisan iugoslavo, onde o tio de Islô, Stjepan, era um exímio atirador.
Isso tudo seria apenas pano de fundo para a História, se a jovem Jovanka então com 17 anos, não fosse também exímia atiradora e se os partisans não constituíssem a maior resistência efetiva de oposição aos alemães. Muito ao contrário, essa combinação de eficiências e fuzis russos com poderosas miras telescópicas é que nos traz um registro diário do tio de Islô, escrito em servo-croata, porém com trechos traduzidos para o inglês.
Os ventos da tradição sopraram este diário até Islô, visto que o tio não tivera filhos e nós nos reunimos, já incandescentes pela tramoia que se avizinhava, na fazenda de Taubaté onde Islô decidira morar. Era como se o Pica-Pau Amarelo voltasse a bicar... O diário tinha mapas feitos à mão, soltos, uma foto de um rio encachoeirado e muita letrinha, mas Islô sabia que Jovanka era dona de um sorriso cativante e que viria a casar nos anos 50 com o Marechal Tito; além disso, e era o que a gente queria saber, tinha sido amiga, ou mais do que amiga, do tio Stjepan.
Achamos um mapa com a sinalização de uma ravina com uma estrada estreita e os nomes encurtados para S e J, nas ancas das elevações. De cada um dos nomes partia uma linha reta que se juntava à outra exatamente no centro da estrada, a cerca de 500 metros dos nomes. Mais adiante estava o restante da informação, cada atirador ficava em um dos pontos e ambos atirariam no mesmo alvo e ao mesmo tempo, por exemplo, no lado direito do banco de um carro. Os disparos seriam percebidos e haveria uma busca para o lado de onde se achava que teria vindo o tiro, era essa a rotina do inimigo; em sequência, o atirador deste lado desapareceria da ação e o outro atirador aguardaria o momento adequado para dar início a mais disparos, pois o pessoal da busca estaria de costas para ele. Parece que funcionava bem.
Funcionava sim, porque na conferência de Teerã em 1943, Stalin comprovou a eficiência dessa tropa aguerrida, conhecedora de cada montanha e escarpa; pudera, eram quase 700 mil partisans no final da guerra, um grupo que não podia ser comparado a nenhum movimento de qualquer país que opôs resistência aos nazistas. Que não atravessaram impunemente a Iugoslávia.
Legal, mas não era exatamente isso que nos levava àquelas páginas amareladas, até esverdeadas, bolorentas, funguentas...
Cata daqui e dali aparece uma poesia em servo-croata, aquilo era importante, dez páginas depois, um trecho em inglês, em prosa, mas ficou claro pela pontuação que era a poesia e era a respeito de Jovanka. Falava de seu sorriso (essa era a chave), sorriso quadrado, com mais brancor que a neve de não-sei-onde, de seus perfeitos joelhos ogivais, ahh, dos joelhos ogivais e que ela tinha pernas! Longas pernas, vejam os leitores as fotos na internet, Jovanka era a Cyd Charisse do Leste Europeu! Falava ainda de seu olhar – e que era melhor não enfrentar. Principalmente se você estiver na outra ponta do cano (isso não estava escrito lá, mas acho adequado esclarecer).
As noites repartidas nas camas saco, com as cabeças cobertas, o ar gélido fora, o calor humano dentro; ali chegamos ao ponto, Stjepan e Jovanka eram um casal, ora ressecado pela espera solitária e infinita do combate e ora apaixonado na cama saco atritada, ralada, esquentada.
Isso era pouco para a minha ebulição, mas como na guerra os tempos de espera são muito maiores que os de ação, tive a certeza de que o amor teve tempo de sobra. E amor com apreensão é aquele que não se desperdiça. Mesmo assim, senti pena que os tiros na ravina tivessem recebido muito mais linhas, palavras e mapas.
De volta ao nosso mundo, meu pensamento focalizou a imagem de Jovanka no Cadillac em 1962, ainda sedutora, atraente e sorridente aos quase 40 anos, uma combatente sem o Stjepan e primeira-dama com o Tito.
Olhando alfabeticamente, foi uma letra à frente.
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