O BISCOITO MOLHADO
Edição 5278 SX
Data: 28 de abril de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
UM BUICK LONGE DEMAIS
Andrew Keitel não escondia de ninguém o quanto considerava
seu padrasto, Richard Ciril O´Connor, o sujeito mais estranho que tivera a
oportunidade de conhecer. Homem seco, de poucas palavras e hábitos
conservadores. Vestia sempre camisas brancas, calças, sapatos e meias pretas,
compradas invariavelmente numa acanhada loja de departamentos que se instalara
na pequena Palmer, subúrbio de Detroit que acolhia os trabalhadores menos
qualificados da indústria automobilística.
Os luxos de Richard eram poucos. Dois deles evidenciavam a
origem irlandesa de sua família. A mistura de corrente de ouro e chaveiro que
portava à cintura de domingo a domingo pertencera a seu pai, assassinado
numa briga de rua quando Richard, o primeiro O´Connor nascido nos Estados
Unidos, mal havia completado três anos de idade. Seus cachimbos eram também
notoriamente irlandeses. Podiam tirar a alegria de viver de qualquer ser
movente que entrasse no raio de ação de seu odor insuportável.
Luxo de verdade, levando-se em conta a pobreza dos moradores
de Palmer, estava no fato de possuir dois automóveis.
Mae Keitel, mãe de Andrew, casou-se com Richard em outubro
de 1949, dois anos após a súbita morte do seu primeiro marido. Richard possuía
um Buick 1938. Seu enteado, precocemente apaixonado por automóveis, já o
considerava um carro fora do comum e particularmente bonito. O problema é que o
Buick Special Sport Coupe não comportava a nova família de Richard, que passara
a ser integrada por Mae, Molly, a avó paterna acolhida pelo Sr. O´Connor, o
irmão mais velho, Stan, e o próprio Andrew. Um carro maior foi providenciado.
Um Chevrolet de quatro portas e muitos lugares.
O Buick não foi entregue como parte de pagamento do
Chevrolet, um carro bem mais moderno. Se a compra do primeiro automóvel,
logo depois da guerra, marcara a evolução profissional de Richard, de esforçado
vendedor autônomo a proprietário de uma revenda de pneus, a compra desse
segundo carro atestava que seu novo negócio estava caminhando muito bem.
Os irmãos Stan e Andrew não se davam bem com Richard. Não
conseguiam entender sua personalidade, sua incapacidade para demonstrar afeto
ou até mesmo de se colocar à frente de seus melhores gestos. Mas para eles era
suficiente a certeza de que o padrasto adorava sua mãe e tinha por Molly, a
avó, um carinho quase inexplicável.
Em meados dos anos 50 uma atitude de Richard veio comprovar,
mais do que qualquer outra, sua complexa personalidade. Fazia muitos anos que
Mae trabalhava na fábrica Packard, costurando acabamentos na forração
daqueles automóveis extraordinários.
Sofria os efeitos da crise que alcançava aquela indústria. Sair
cedo de casa para enfrentar os problemas de uma empresa condenada à extinção
significava um sacrifício que excedia suas forças. Richard pediu-lhe que
deixasse a empresa, argumentando que o negócio de pneus estava em franca
expansão e que precisava muito de uma pessoa de confiança para auxiliá-lo na
administração do negócio. Deixou claro que falava de uma relação profissional,
que estava disposto a lhe pagar o dobro do que recebia na Packard. Mae aceitou. Jamais botou os pés na loja de pneus. Mas nunca
deixou de receber o salário combinado, religiosamente em dia.
Esse lado especial de Richard não encobria seus problemas de
relacionamento. Com a maturidade, Andrew fazia esforços enormes para
evitar constrangimentos para sua mãe, que por sua vez se desdobrava para atenuar
aquela relação belicosa.
Na primeira oportunidade que surgiu, Stan fez sua opção por
estudar longe de casa, abraçando em seguida uma carreira militar que lhe
assegurava distância do padrasto.
Andrew não foi tão radical. Fez diversos cursos, inclusive
engenharia mecânica, em Detroit. No final dos anos 60 estava envolvido com
a fabricação de peças de reposição destinadas a automóveis antigos, juntando atividade
profissional à paixão que desde cedo demonstrara pelos carros de coleção.
Nessa altura dos acontecimentos, Richard ainda possuía o
Buick 38. Nos últimos anos vários automóveis haviam passado por suas mãos, sem
que o Buick perdesse sua vaga na garagem. Para Andrew, um especialista, aquele automóvel
raro e de linhas elegantes tinha um significado especial. Mas a ele Andrew não
tinha acesso.
Com o passar dos anos, o Buick começou a mostrar sinais de
deterioração. Por diversas vezes o enteado colocou-se à disposição do
padrasto para empreender sua restauração, dedicando a essa empreitada uma competência
que já era então reconhecida entre colecionadores de todo o país. Seus
préstimos foram sempre recusados.
Anos depois, Andrew começou a assistir, finalmente, o que
parecia ser o processo de recuperação do Buick, executado pessoalmente pelo
padrasto. Viu-se diante de um filme de terror. O carro ganhou cor
metálica, imprópria e feia, além de estofamento plástico em cores
berrantes. Pneus fora dos padrões ressaltavam os muitos enganos cometidos.
Em relação à parte mecânica, a conjugação de adaptações surpreendentes com peças
de maus fornecedores parecia assegurar, definitivamente, a inviabilidade do
projeto.
Richard O´Connor e Mae foram morar em Grand Rapids, cidade
mais de acordo com a fortuna que ele acumulara com o negócio dos pneus. Em 1979, Andrew transferiu família e negócios para Sacramento, na Califórnia, onde floresciam
as atividades relacionadas à restauração de automóveis antigos.
Pouco tempo depois, Mae faleceu. Andrew imaginou que suas
relações com o padrasto fossem esfriar completamente. Mas isso não
aconteceu. De alguma forma ele se sentia ligado àquele homem que tinha sido tão
especial para sua mãe. Não deixou de telefonar-lhe pelo menos duas vezes por
semana. Richard O´Connor tinha, à época, mais de oitenta anos de idade.
Para surpresa de Andrew, o assunto Buick passou a constar,
sutilmente, das conversas de seu padrasto. O automóvel já estava em poder de
Richard há quase cinquenta anos. Uma ou outra informação lhe era solicitada. O
endereço de alguns fornecedores devidamente confirmados.
Na madrugada do dia 13 de fevereiro de 1991, Andrew recebe o
telefonema de um antigo vizinho de Palmer. Seu padrasto havia falecido, aos 86
anos. Subitamente, depois de um fim de semana em que chegara até mesmo a aparar
a grama do quintal.
Dois dias depois, Andrew e Stan participaram dos serviços
fúnebres, acompanhados dos amigos que Richard fizera em Grand Rapids,
ligados às obras de benemerência que o padrasto vinha apoiando. E, em poucos dias, conheceram os termos do testamento. Uma fortuna apreciável seria
dividida entre os dois enteados e as obras de caridade a que Richard se
dedicava.
Nos termos do documento, Andrew era, agora, o novo
proprietário do Buick. Foi à casa do padrasto. Carregava o grande molho de
chaves e a corrente de ouro que tão bem conhecia. Visitou os diversos cômodos
da casa e comoveu-se diante das inúmeras lembranças da mãe que Richard O´Connor
mantinha vivas. Finalmente, dirigiu-se à garagem para rever o automóvel que
tanto apreciava e que se mostrara, para ele, sempre inacessível. Depois de experimentar um sem número de chaves, conseguiu,
finalmente, abrir a porta da garagem. Dezenas de caixas empilhadas impediam o
acesso ao Buick. Todas elas vazias. Ao removê-las, identificou marcas e
logotipos de vários fornecedores de peças, amplamente conhecidos. Atônito,
viu-se diante de um automóvel primorosamente restaurado em seus mínimos
detalhes. Trabalho, sem dúvida, dos melhores especialistas.
Conferidos todos os detalhes da empreitada, sentiu-se
compelido por uma força estranha a vasculhar o porta-luvas do Buick. Dentro
havia um cartão amarelado com os dizeres: "Espero que tenha valido a pena
esperar. Um beijo de seu pai, Richard O'Connor"
Uma bela história.
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