RO-BER-TÓ
Conheci o Jorge Lettry em S. Lourenço. Ele assistiu a uma palestra que fiz no hotel durante o evento do Veteran Car de Minas Gerais. A palestra era sobre o automóvel no Rio de Janeiro - do Barão do Rio Branco ao tempo da internet - e consegui juntar muitas fotografias de 1900, com arrojados motoristas e seus artefatos mecânicos de então.
Naturalmente, a identificação desses automóveis veteranos daquelas "rodovias" é muito difícil e entre as fotos escolhidas, havia duas que eu realmente não tinha nem pista do carro que poderia ser. Então sapequei, com a firmeza de alpinista em Pão de Açúcar molhado, que seriam o Unknown 1902 e depois, o Unknown 1909. Não abusei do uso dessa desconhecida marca e ninguém falou nada, aplaudiram o suficiente para eu ficar satisfeito e ir embora.
Na saída, o Jorge se apresentou e falou baixinho: "Unknown, é?". Caímos na gargalhada e ficamos amigos instantaneamente, o que, eu soube depois, não era nada corriqueiro com ele.
Patrão severo, chefe de equipe de competição da Vemag nos anos 60, impunha muita disciplina aos jovens pilotos, quase sempre garotos que davam o coração e o talento nas pistas, mas que certamente, detestavam obedecer ordens de quem quer que fosse.
Mas não eram só os pilotos que sofriam... mecânicos, chefes, entrava todo mundo pelo cano na presença de seus argumentos irrefutáveis e dados precisos, praticamente fatos. A lista é enorme, pois logo que chegou no Brasil foi para uma revenda Volkswagen, antes mesmo da fábrica se instalar em 1953. Quando começaram a acompanhar os resultados das oficinas, a alemãozada deu de cara com copiosos relatórios do Jorge. Aliás, ele não gostava nem um pouco de Fusca, metia o pau com vontade.
Naqueles tempos, os carros de competição iam para as corridas rodando, às vezes, 500, 600 km e cada piloto levava o carro que pilotaria em seguida. Consta que havia recomendações em relação à velocidade máxima, para que não se afastassem muito do caminhão da fábrica, onde ia o Jorge. A turma sumia na poeira...
Costumeiramente um pneu furava, ou quebrava um parabrisa; o Jorge passava insensível pelo infeliz, às vezes dava um tchau.
Eu sabia disso tudo, mas tinha a sombra do Unknown a meu favor e, no nosso papo, ele falou que tinha sítio, que fazia marzipã e mais isso e mais aquilo, naquela conversa de duas horas. Disse a ele que eu frequentava um restaurante do Rio que servia marzipã de própria fabricação, o Leão da Baviera, e o Lettry abriu um olhão. Como eu era presidente do Veteran carioca, eu o convidei para dar uma palestra e que no dia seguinte, eu o levaria para provar o tal marzipã.
A palestra foi um sucesso, gente saindo pelo ladrão na velha casa de Santa Teresa - para onde o clube se mudou após ser despejado do imóvel anterior sob falsas premissas, uma característica pessoal do presidente que me antecedeu. Eu fiquei feliz com a palestra, um sucesso que solidificou a claudicante nova sede e no dia seguinte, promessa mantida, lá fomos nós para o Leão da Baviera.
O Lettry me avisou que viria também um amigo, o Pessoa de Mello, ou Homem de Mello, não tenho certeza hoje, mas era uma pessoa e homem, além do Mello indiscutível. Entretanto, ele me avisou que a chegada do Mello estava atrasada e que não poderíamos almoçar no horário comum.
Não houve problema, pois o dono do Leão da Baviera era o Bertrand, um alemão super simpático que atendia os clientes com sua mulher de pele de seda, Márcia, a Mulata nº2, ou seja, vem aqui mais história.
O Bertrand começou o Leão com a primeira mulher, que não conheci, mas que devia ser igualmente atraente. Um dia tirou férias para visitar a mãe na Alemanha e, para não perder a auxiliar, levou-a junto. Chegando lá, o casal foi tomar chopp com os velhos amigos do Bertrand, que ficaram maravilhados, estonteados, e certamente esfomeados, com a visão da formosura em tom de chocolate amargo. Não tiravam o olho nem um segundo, e toda hora cumprimentavam o amigo pela sábia escolha de tão bela companheira. Foi tanto cumprimento que o Bertrand saiu-se com essa: - Ihhh, lá no Brasil tá cheio!
Foi o bastante, os amigos replicaram na hora - "Então deixa ela aqui". E assim chegamos na Mulata Nº2, pois a primeira ficou entre os germânicos. Passada esta importante evolução da administração do Leão da Baviera, voltemos ao almoço. Chegamos quase três da tarde, Bertrand nos recebeu com um sorriso naquele espaço que mais parecia um stand da BMW. Toalhas quadriculadas de azul e branco, sofás azul e branco, cortinas azul e branco... Estava completa a ambientação daquele encantador Leão da Baviera, paredes de madeira, cores nacionais, uma sequência de moças achocolatadas e um bávaro no fogão. Meus convidados se encaixaram muito bem no ambiente e começava uma longa e preguiçosa tarde, com um final feliz previsto para ser coroado por marzipã caseiro.
Porém, mal bebemos uma rodada das compridas cervejas de trigo, a porta se abriu e cinco japoneses entraram muito respeitosamente no salão, indagando se podiam comer. Bertrand abriu o sorriso de casa cheia às três da tarde e gesticulou amigavelmente para que entrassem. Os japoneses também se encaixaram perfeitamente no ambiente e o Lettry, de repente, parou dez segundos, estático, silencioso, um tanto fora do normal e disse: este é um momento histórico!
Não entendi nada e nem o Mello, que era conhecedor dos rompantes do mago dos DKW e petrificou um sorriso pela metade, nem sonhando no que poderia vir daí, porque ele sabia que algo viria, ah, isso viria. Lettry repetiu, este é um momento histórico, e ante a minha cara atônita, perguntou: teu nome não é Roberto? É, disse eu ainda tranquilo. Pois então, Ro-ber-to, Roma, eu, italiano, Berlim, você e o bávaro e Tóquio, a japonesada. Vou lá conversar com eles. Diante dessa situação pró-Eixo, eu também achei melhor me petrificar e ficamos eu e o Mello a uma distância segura de algum estilhaço que poderia vir nos atingir. Não sei se tinha intérprete, se eram nisseis, sei que em dois minutos o Lettry estava sentado com eles, todos rindo de se acabar, de vez em quando apontando para mim, da história eu era o Berlim e também do Roberto o estopim. E o marzipã? Nem lembro.
Pô!!!! Leão da Baviera? Bertrand? Obrigado pela lembrança! Memórias sedimentadss, após muitas Weizen Bier, bebidas no minúsculo restaurante...
ResponderExcluirOnde ficava o restaurante Leão da Baviera?
ResponderExcluirFicava na Rua São Bento, esquina com Rua da Quitanda. Fechado há muitos anos. Sempre me senti agradecido ao Roberto, que me apresentou ao Bertrand e à moça da pele de Lindt 70%, a segunda. Voltei lá várias vezes, mesmo quando já trabalhava em São Paulo, até o dia em que dei com a cara na porta. O sobrado continuava lá até uns meses atrás, fechado e à venda mas com a fachada bem mantida.
ResponderExcluirHouve dois endereços. O que vale ficava na esquina de Primeiro de Março com Dom Gerardo.
ResponderExcluirOs ônibus vinham pela Primeiro de Março, dobravam nessa esquina e, como era uma rua estreita e os motoristas eram de competição, a tangente ideal era na parede do Leão, por cima da calçada.
A calçada foi sendo rebaixada até cerca de um centímetro acima do asfalto.
Os anônimos poderiam finalizar com o nome....
Sim!! Primeiro de Março com Dom Gerardo. Era a outra esquina! Muitos anos longe do Rio e buscando só pela memória me confundi. O sobrado continuava la até uns meses atrás.
ExcluirComo reclamar dos anônimos, se são eles os únicos comentaristas?
ResponderExcluirNão sou Anônimo, mas nada tenho a acrescentar ao tema, exceto que a crônica está muito boa.
ResponderExcluirÉ verdade. Ótima crônica.
ResponderExcluirPena que eu não me lembre do Leão da Baviera.
Relato ótimo, mas nunca ouvi falar desse restaurante. As comidas alemãs que conheço são o Kassler e o Eisbein. O único restaurante do tipo em que já entrei foi o Brasil, se não me engano, na Mem de Sá. Quando perambulei pelas plagas alemãs e austríacas meu prato preferido era o Wiener Schnitzel. Com Knödel. Mas também comi Binnensuppe.
ResponderExcluirAdorei ler comentários assinados. E elogiosos...
ResponderExcluirSou o cara que errou as esquinas! Como me esqueci que a esquina do Leão da Baviera é a do Mosteiro!
ResponderExcluirTô identificado agora.
Putz! Mauro Salgado… errei alguma coisa na identificação. : /
ResponderExcluirErrou a esquina, esqueceu a identidade, mais alguma coisa..?
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