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terça-feira, 6 de junho de 2023

3137 - Almoços no Jirau (R)

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          O BISCOITO MOLHADO

   Edição 2257                       Data: 04 de Fevereiro de 2005       
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ENTRE  O  PRATO  E  A  BOCA
         

Assim reagiu a Cláudia da ANTAQ, quando soube que, por coincidência, o passageiro ao seu lado, no avião, estudara com o Dieckmann:
“A cantada era típica de ex-aluno do Colégio Militar”.

Por que iniciei a edição de hoje do Biscoito Molhado com esse fato ocorrido em 2002? Não sei; veio à minha mente e aqui está, embora eu pretenda tratar de um acontecimento bem mais recente: o almoço de anteontem, onde, diga-se de passagem, dos quatro comensais, três estudaram no Colégio Militar.

Se a crítica da Cláudia aos galanteadores do Colégio Militar se fundamentou na conversação de um assunto só, ela não cabe aos colegas do Dieckmann que compareceram ao referido almoço, que falaram de futebol a Direito Administrativo, passando pela amizade entre homem e mulher com fundo freudiano, ou seja, sexual, e com fundo Junguiano, ou seja, com arquétipos do subconsciente coletivo.
Mas tudo começou com o Jeep. 

- “Não confio em jipeiro, mas será uma boa se o Reinaldo aparecer para almoçar com a gente”.
- “A sua cisma com jeep é por que o general Patton morreu, em Manheim, num acidente com esse veículo?”
 Eu ainda cogitava se faria ou não essa pergunta ao Dieckmann, quando ele se ergueu da cadeira.
- “Olha, o jipeiro aí”.

Abraços. Saudações e trações em todos os braços e em todas as rodas. Minutos depois, o assunto virava para futebol. Relembraram-se os dois clássicos-vovôs de 1957: no turno, o Fluminense derrotou o Botafogo por 1 a 0, no returno e final do campeonato, o Botafogo ganhou por 6 a 2.

- “Naquele 1 a 0 do turno, o jogo não terminou empatado porque o Castilho agarrou um pênalti batido por Didi. O meia do Botafogo deu a paradinha que, futuramente, Pelé adotaria, e o Castilho, escarmentado no gol como era, não saiu do lugar. Isso perturbou o Didi por frações de segundo, o que bastou para Castilho antecipar-se e agarrar o pênalti.
Nesse exato momento, chegou o Causídico Verborrágico.

- “Didi?...”- murmurou ele.
Embora o tricolor Causídico não vivera a época em que Didi fora campeão pelo Fluminense, em 1951, seus olhos de garoto deslumbrado ressurgiram:
- “Certa vez, eu, menino, vi o Didi... Que escândalo eu aprontei! Didi....Didi... Mamãe, o Didi...”

Por pouco, o pequeno Causídico não reverenciou o craque como os índios reverenciaram Caramuru depois do primeiro tiro.
Lembrei-me, conseqüentemente, de outro jogador, Fifi. Meio de campo do Atlético Mineiro, foi contratado pelo Botafogo, por volta de 1965, para substituir Didi, que pendurara as chuteiras. Nada modesto, Fifi não só se colocou à altura do bicampeão do mundo, como anunciou um  invento: o chute saca-rolha.  Didi criara a “folha seca”, que representava a bola, em íntima cumplicidade com a lei da gravidade, caindo com balanceios traiçoeiros na direção do gol inimigo. Não teríamos mais o chute da folha seca, mas Fifi nos prometia em seu lugar o chute saca-rolha. Que diabo representaria o “saca-rolha” nas quatro linhas de um campo de futebol?... A resposta veio depois de uma dúzia de jogos do “sucessor do Didi”: nada. Fifi foi, com o seu pífio futebol, para o banco de reservas. Não perdeu, porém, o penacho.  Conta o jornalista botafoguense Sandro Moreira que, certa vez, com o Fifi já na reserva, foi chamado por um amigo, num aeroporto. Fifi, sem perda de tempo, repreendeu severamente esse amigo:
- “Não grita meu nome, senão aglomera”.
Ele delirava, provavelmente, com a existência de torcedores, como o garoto Causídico, a berrar:
- “Fifi... Fifi... Mamãe, o Fifi...”
Essa lembrança me tocava, mas eu não me abstraía da conversação à mesa. Reinaldo, o jipeiro, falava do seu primeiro deslumbramento com o Maracanã, enquanto o seu pai encontrava uma amiga, e o Causídico se referia a outro nome das quatro linhas que vira, também garoto, nas ruas, como um cidadão normal. 
- “Eu me aproximei e, depois de tomar coragem, perguntei se ele não era o técnico Martim Francisco... O sujeito me olhou com uma raiva...”
- “Não era o Martim Francisco, Elio?” - quis saber o Dieckmann.

Elio, o nosso causídico verborrágico, prosseguiu:
- “O sujeito entrou, depois, no carro, e gritou furiosamente para mim: - Sou o Yustrich”.
- “Porra, Elio, logo o Yustigre?!...” 

Com a fama de truculento que Yustigre cultivava com berros e catiripapos, Elio era, certamente, um sobrevivente. 

Reinaldo, ao lado do Dieckmann, depois de falar da amiga do pai, reconhecida entre 150 mil torcedores, passou a falar das amizades femininas que cultivou pela vida:
- “Tal pai, tal filho”.

Dieckmann só não recorrera à citação latina “Talis pater, talis filius”, porque implicara com o seu professor de Latim, Vicente, e, por efeito dominó, com todos aqueles que se expressaram nesse idioma, a começar pelo imperador Júlio César, passando por Virgílio.
- “Vamos comer?” - lembrou o Dieckmann.

Na hora de servir-se de comida, Elio lamentou a abstinência do feijão, o que fez lembrar, em parte, uma frase de um ex-ministro dos Transportes, Eliseu Padilha: “....Pelé e asfalto são as duas coisas pretas que o brasileiro gosta.” Esqueceu-se o ex-ministro do feijão preto, que, não por esse esquecimento, viu-se às voltas com os protestos das comunidades negras.
- “Engraçada essa dieta do Causídico, enche o prato de carne, mas não pode comer feijão...” - estranhou o Dieckmann.

A mastigação não impediu que o Reinaldo se reportasse a outra amiga sua, a sexta, se não contabilizarmos a amiga do Maracanã que, na verdade, era amiga do seu pai.
Elio, que soubera, quando chegou ao restaurante, que eu deixara de ser tricolor por causa da acachapante derrota de 6 a 2 para o Botafogo, em 1957, ainda não se conformava:
- “É a primeira decepção minha com o autor do Biscoito Molhado”.
- “Crianças não sabem lidar com tristezas tão profundas”.- argumentei.

A sorte é que eu não me entendia por gente na Copa de 1950, senão, eu poderia ser hoje um ugandês naturalizado, e a  decepção do Elio seria bem maior.
E a conversação reiniciou.
Dos jogadores, passou-se para os juizes de futebol da década de 60 e 70: Antonio Viug, Airton Vieira de Morais, o popular Sansão, Eunápio de Queirós, também chamado de Larápio de Queirós, Alberto da Gama Malcher...
- “Este foi meu vizinho”.- interrompeu o Dieckmann.

Dos juízes de futebol para os juízes de tribunais foi um pulo, ou um sopro de apito.
- “Depois de aposentado, pretendo escrever dois livros: um sobre Direito Administrativo e outro sobre os tribunais”.- revelou o nosso Causídico Verborrágico.

As conversas tomavam vários rumos quando, subitamente, Dieckmann lançou uma pergunta:
- “Quem foi Laurinda Santos Lobo?”
Dentro do contexto do nosso almoço, eu logo imaginei que foi mais uma das amigas do Reinaldo, mas preferi seguir o ensinamento talmúdico de que o silêncio vale ouro. Como todos se calaram, Dieckmann, tornou-se enigmático:
- “Tirem par ou ímpar”.

Reinaldo do jeep e das amigas tirou par ou ímpar com o Causídico, e perdeu:
A final, por conseqüência, ficou entre mim e o Causídico. Entrei em campo já derrotado, pois previra que o meu adversário encontraria brechas na lei para me vencer. Não deu outra. 
Dieckmann puxou, então, o troféu do vencedor: um livro sobre o ministro do governo de Campos Sales, o médico Joaquim Murtinho.
- “Ah, sim: Laurinda Santos Lobo era filha do Joaquim Murtinho”.- precipitei-me.
- “Sobrinha”.- corrigiu o Dieckmann.

Puro ato falho meu, pois era permitido tomar a sobrinha como amante, no início do século, não a filha. 
- “Gente, vamos trabalhar”.- lembrou o Dieckmann.
Olhei para o relógio: passava das duas e meia.

E saímos do restaurante um pouco mais pesados de comida, porém com o espírito bem mais leve.


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