O BISCOITO MOLHADO
Edição 2106 Data: 30 de junho de 2004
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NO ÚLTIMO ATO, O TIRO
- ”Eu já não te vi em algum lugar?”
Ora, uma pergunta dessa feita ao Dieckmann é uma oportunidade para ele abrir toda a sua plumagem de pavão.
- “Não teria sido no Faustão?... Ou foi no Bom Dia, Brasil?... Também dei umas entrevistas na TV a cabo...”
Não; o senhor que fora apresentado ao Dieckmann, por mais que exigisse da memória, não se lembrava do local.
- “Califórnia... Sou nome de armazém na Califórnia, sem o “c”...
Explico: um admirador mexicano, não muito afeito aos sobrenomes batavos, comeu o “c”, e meu nome ficou Diekmann. Diekmann Store. Não teria sido lá que você viu, não a mim, pois viajo mais à Europa, mas o meu nome?”
Não. Não fora no estado da indústria cinematográfica. A memória do interlocutor do Dieckmann falhara, mas o seu entendimento não: fora apresentado a uma pessoa assediada pela mídia. Nosso amigo percebeu, então, que era o momento de se mostrar mais próximo da realidade.
- “Apesar dessas aparições, evito o que posso expor-me na mídia. Sabe como é: aglomerações ao redor...
Agora mesmo, o Faustão me convidou de novo para ir ao seu programa. Recusei o convite. Pediu-me, então, permissão para mostrar o meu retrato. Dei a permissão, porém impus uma condição:
“Pode mostrar o meu retrato desde que seja o mais rápido possível.”
Faustão ainda tergiversou, gaguejou com aquele sotaque paulista que a disputa no IBOPE com o Gugu se acirrara, que precisava me mostrar mais... Não adiantou: fui incisivo.
No dia seguinte, amigos falavam que viram o meu retrato no programa do Faustão, e que o meu retrato estava com pressa...”
O interlocutor do Dieckmann, que já estremecera com um estalo na memória quando ele falara no sotaque do apresentador da TV Globo, sentiu a mesma sensação de Arquimedes quando descobrira a Lei do Empuxo.
- “Eureka! Foi em São Paulo... Eu te vi em São Paulo por ocasião das festividades dos 450 anos da cidade com um amigo, assistindo a um desfile de carros antigos.”
- “É verdade – meneou Dieckmann a cabeça – eu lá estava com um amigo que pertencera ao governo da prefeita Marta Suplicy. Fui lá para fazer-lhe companhia, ver os carros clássicos e, principalmente, porque, dias antes, a Rita Lee se queixara num show, no Canecão, que não via celebridades em São Paulo...”
Nesse momento, Dieckmann tentou não imitar, mas caricaturar a Rita Lee:
-“...Paulista não sabe fazer festa. Vejam os 450 anos de São Paulo...Enquanto no Rio se esbarra em cada esquina com uma celebridade, lá em São Paulo o máximo que a gente vê é a Hebe.”
Dieckmann, agora, despia a máscara da Rita Lee, e vestia a sua:
- “Resolvi, mais pela queixa da cantora e compositora, ir a São Paulo, naquela ocasião. Não poderiam agora reclamar de falta de celebridade na festa dos 450 anos...”
Bem, leitores do Biscoito Molhado, com pequenas traições aos fatos, pois procuramos deter o máximo o ímpeto da nossa imaginação, foi esse o diálogo do Dieckmann com o senhor que sofrera uma rápida crise de amnésia.
Dirá um, ou talvez dois leitores mais caturros, que nós incomodamos muito o nosso amigo com piadinhas. Bem, às vezes comparamos o Dieckmann com personagens do Nélson Rodrigues, como recentemente à consultora sentimental Myrna, como ao Otto Lara Resende... Alguém talvez diga que o escritor mineiro nunca foi personagem nelsonrodriguiano; mas foi. Nélson Rodrigues escreveu centenas de páginas galhofeiras onde Otto Lara Resende se destacava como personagem.
Muitos estudiosos garantem que a frase “O mineiro só é solidário no câncer”; foi criada na realidade por Nélson Rodrigues que, para deixar Otto Lara Resende em situação constrangedora perante os seus conterrâneos, atribuiu-lhe a autoria. Não contente, o dramaturgo escreve uma peça em que um personagem cita por diversas vezes essa “frase do Otto”, e a intitula “Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende”.
Carlos Drummond de Andrade, que nada tinha a ver com isso, a não ser a mineiridade, telefonou certa vez para Otto Lara Resende, incitando-o a dar um basta a esses deboches do Nélson Rodrigues.
Não me recordo onde li isso, faz muito tempo, mas a resposta do escritor ao poeta que o chamava ao mau humor... digo: à compostura de macho, foi mais ou menos esta:
- “Fique sossegado: quando chegar ao último ato, eu dou um tiro no Nélson Rodrigues.”
Talvez no quinto ato do Rigoleto – sussurrou, talvez.
Eles, na verdade, eram fascinados um pelo outro. Conta Ruy Castro, no “Anjo Pornográfico”, que Nélson Rodrigues muitas vezes batia à porta da casa do Otto Lara Resende e ouvia da empregada o aviso que o patrão não estava em casa. Passados alguns minutos, o dramaturgo repetia o ritual até o próprio dono da casa aparecer e abrir a porta com essas palavras: “Está bem, Nélson, você venceu.”
Era tamanho o encantamento que escritor mineiro exercia sobre os ouvintes, numa conversação, que o cronista Rubem Braga afirmava que o Otto Lara Resende era que nem passarinho: de quem pegasse primeiro.
Nesta altura da nossa edição, talvez um ou outro leitor note o desaparecimento do Dieckmann. Mas é proposital: vamos deixá-lo desaparecido, senão ele fica mais mascarado do que já é.
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