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terça-feira, 19 de março de 2019

3103 - FF Botões e Lágrimas



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5362 FF                           Data: 19 de marco de 2019

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVI

O JOÃOZINHO NÃO!!!

Eu quero o Joãozinho
Marcelo era um dos maiores colecionadores do Brasil. Tinha 5, 6, talvez 7 mil botões, dos mais comuns até os raríssimos. Um valor considerável em dinheiro.
Apenas um botão faltava em sua coleção: O Joãozinho.
Joãozinho pertence ao irmão dele, Rodolfo. Botão comum, olhinho, 3,5, mas o terror de sua infância. Nos embates com o irmão sempre era o Joãozinho que marcava o gol da vitória.
Sempre!
Joãozinho avançava pela esquerda, caía pelo meio e já pedia o chute.
Marcelo sentia o suor nas mãos trêmulas, as pernas bambeando, a ajeitada no goleiro era mera protocolo antevendo o grito inevitável que tanto o irritava.
Golllllllllllll!!!!!!!GOLAÇO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
E assim foi durante anos. Campeonatos, amistosos, sempre Joãozinho acabava com os sonhos do Marcelo e o grito estridente do irmão, um grito de insulto, uma provocação aos ouvidos de Marcelo ecoava pela casa.

Golllllllllllll!!!!!!!GOLAÇO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A idade porém fez com que os campeonatos naquela sala ampla na Tijuca fossem rareando, o diário para semanal, e daí para mensal até que não jogaram mais.
Rodolfo, mais velho, começou a estudar na UERJ, a frequentar os bares das redondezas e descobriu os prazeres do sexo descompromissado com as beldades da faculdade.
Marcelo, no entanto, sempre foi mais tímido, introvertido. Mesmo quando também passou para a UERJ, alguns anos depois sua vida mudou pouco. Seus amigos eram os botões e sua coleção cada vez maior agora que não dependia mais da mesada modesta do pai e sim de um salário cada vez maior numa empresa de auditoria e consultoria.
O que unia os dois irmãos, a única afinidade na verdade, eram os botões e sem este elo o afastamento quase definitivo era uma questão de tempo.
Não tardou e aconteceu;
Rodolfo viveu bem a faculdade com mais alguns anos de farra depois dela, mas conheceu uma americana e enveredou pela área acadêmica, indo morar em Irvine, Califórnia. Levou o básico, incluindo sua caixinha de 20 botões, entre eles o Joãozinho.
Marcelo não, sempre focado, dedicou-se aos estudos, galgou cada vez mais posições na empresa e conseguiu o cargo de presidente. Casou e foi morar em São Paulo carregando seus 7 mil botões cuidadosamente embalados.
Os encontros entre eles eram apenas no Natal, na ampla sala do apartamento de seus pais, palco das lembranças da infância.
Nestes encontros escassos e com uma convivência cada vez mais distante na qual as palavras saem desajeitadas Marcelo ainda tentava.
- Rodolfo, você não joga há anos, não me venderia o Joãozinho?
- De jeito nenhum, a resposta era automática, incisiva e com um olhar cortante.
Foram feitas mais algumas tentativas, sempre no Natal, até que os pais faleceram e os encontros anuais acabaram.
Nem amigos no Facebook eram.
Perto dos 50, o destino não foi generoso com Marcelo. Numa consulta de rotina descobre um câncer terminal, 2 meses de vida.
Avisa aos amigos, alguns parentes próximos e faz um último pedido para esposa.
Rodolfo fica sabendo por terceiros, reluta em vir, há anos não o vejo diz para a esposa, mas o sangue do meu sangue fala mais alto e o avião pousa num domingo de sol em São Paulo.
Seu irmão já muito fraco, magro, longe dos seus mais de cem kilos que manteve por anos o vê entrando pela porta do quarto do hospital.
Um sorriso discreto, mas sincero permeia o ambiente e emociona a todos.
Primeiro falam amenidades, relembram os bons tempos naquela sala feliz na Tijuca, dias de sol, sem preocupação, apenas jogos de botão, coca cola e a fantasia da infância.
Marcelo percebe o irmão desarmado, naquele quarto de hospital em um estado terminal ele sente um calor que o envolve, como um abraço materno. Sente que é momento.
- Rodolfo, eu vou deixar a minha esposa Valéria e nossos filhos muito bem. Ganhei um bom dinheiro, nada de preocupações eles terão, inclusive fiz um pedido a ela. Meus botões, eu tenho um elo com eles, algo como se fossem uma família. Eles serão enterrados comigo, fiz este pedido a ela. Sim, sei que é estranho, mas ao meu lado sinto que eles estarão me abraçando em meu descanso. Porém, Rodolfo, falta um, somente um pro meu descanso ser completo. O Joãozinho. Você me daria o Joãozinho pra eu finalmente descansar em paz?
Rodolfo olha pro irmão, vê as olheiras, a cara de quem chegou ao final da luta. Pensa como poderiam ter sido mais unidos, como o tempo passou rápido, como dos 20 pros 40 foi um pulo. O que parecia eterno foi um sopro, um sopro de vida. Lágrimas começam a cair, pega na mão do seu irmão, olha bem fundo nos seus olhos e diz.,
- Não Marcelo. O Joãozinho não!!!



2 comentários:

  1. Talvez o botão fosse o último elo, ou o único, a ligar os dois irmãos.
    Para que decretar a morte do Joãozinho?
    Melhor assim.
    Elos devem permanecer vivos.

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  2. Muito feliz com esta fornada do Biscoito. Agradável elo que nos mantém, leitores, ligados a uma boa prosa.

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