O BISCOITO MOLHADO
Edição 5362 FF
Data: 19 de marco de 2019
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXVI
O JOÃOZINHO NÃO!!!
Eu quero o
Joãozinho
Marcelo era um
dos maiores colecionadores do Brasil. Tinha 5, 6, talvez 7 mil botões, dos mais
comuns até os raríssimos. Um valor considerável em dinheiro.
Apenas um botão
faltava em sua coleção: O Joãozinho.
Joãozinho
pertence ao irmão dele, Rodolfo. Botão comum, olhinho, 3,5, mas o terror de sua
infância. Nos embates com o irmão sempre era o Joãozinho que marcava o gol da
vitória.
Sempre!
Joãozinho
avançava pela esquerda, caía pelo meio e já pedia o chute.
Marcelo sentia o
suor nas mãos trêmulas, as pernas bambeando, a ajeitada no goleiro era mera
protocolo antevendo o grito inevitável que tanto o irritava.
Golllllllllllll!!!!!!!GOLAÇO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
E assim foi
durante anos. Campeonatos, amistosos, sempre Joãozinho acabava com os sonhos do
Marcelo e o grito estridente do irmão, um grito de insulto, uma provocação aos
ouvidos de Marcelo ecoava pela casa.
Golllllllllllll!!!!!!!GOLAÇO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A idade porém
fez com que os campeonatos naquela sala ampla na Tijuca fossem rareando, o
diário para semanal, e daí para mensal até que não jogaram mais.
Rodolfo, mais
velho, começou a estudar na UERJ, a frequentar os bares das redondezas e
descobriu os prazeres do sexo descompromissado com as beldades da faculdade.
Marcelo, no
entanto, sempre foi mais tímido, introvertido. Mesmo quando também passou para
a UERJ, alguns anos depois sua vida mudou pouco. Seus amigos eram os botões e
sua coleção cada vez maior agora que não dependia mais da mesada modesta do pai
e sim de um salário cada vez maior numa empresa de auditoria e consultoria.
O que unia os
dois irmãos, a única afinidade na verdade, eram os botões e sem este elo o
afastamento quase definitivo era uma questão de tempo.
Não tardou e
aconteceu;
Rodolfo viveu
bem a faculdade com mais alguns anos de farra depois dela, mas conheceu uma
americana e enveredou pela área acadêmica, indo morar em Irvine, Califórnia.
Levou o básico, incluindo sua caixinha de 20 botões, entre eles o Joãozinho.
Marcelo não,
sempre focado, dedicou-se aos estudos, galgou cada vez mais posições na empresa
e conseguiu o cargo de presidente. Casou e foi morar em São Paulo carregando
seus 7 mil botões cuidadosamente embalados.
Os encontros
entre eles eram apenas no Natal, na ampla sala do apartamento de seus pais,
palco das lembranças da infância.
Nestes encontros
escassos e com uma convivência cada vez mais distante na qual as palavras saem
desajeitadas Marcelo ainda tentava.
- Rodolfo, você
não joga há anos, não me venderia o Joãozinho?
- De jeito
nenhum, a resposta era automática, incisiva e com um olhar cortante.
Foram feitas
mais algumas tentativas, sempre no Natal, até que os pais faleceram e os
encontros anuais acabaram.
Nem amigos no
Facebook eram.
Perto dos 50, o
destino não foi generoso com Marcelo. Numa consulta de rotina descobre um
câncer terminal, 2 meses de vida.
Avisa aos
amigos, alguns parentes próximos e faz um último pedido para esposa.
Rodolfo fica
sabendo por terceiros, reluta em vir, há anos não o vejo diz para a esposa, mas
o sangue do meu sangue fala mais alto e o avião pousa num
domingo de sol em São Paulo.
Seu irmão já
muito fraco, magro, longe dos seus mais de cem kilos que manteve por anos o vê
entrando pela porta do quarto do hospital.
Um sorriso
discreto, mas sincero permeia o ambiente e emociona a todos.
Primeiro falam
amenidades, relembram os bons tempos naquela sala feliz na Tijuca, dias de sol,
sem preocupação, apenas jogos de botão, coca cola e a fantasia da infância.
Marcelo percebe
o irmão desarmado, naquele quarto de hospital em um estado terminal ele sente
um calor que o envolve, como um abraço materno. Sente que é momento.
- Rodolfo, eu
vou deixar a minha esposa Valéria e nossos filhos muito bem. Ganhei um bom
dinheiro, nada de preocupações eles terão, inclusive fiz um pedido a ela. Meus
botões, eu tenho um elo com eles, algo como se fossem uma família. Eles serão
enterrados comigo, fiz este pedido a ela. Sim, sei que é estranho, mas ao meu
lado sinto que eles estarão me abraçando em meu descanso. Porém, Rodolfo, falta
um, somente um pro meu descanso ser completo. O Joãozinho. Você me daria o
Joãozinho pra eu finalmente descansar em paz?
Rodolfo olha pro
irmão, vê as olheiras, a cara de quem chegou ao final da luta. Pensa como
poderiam ter sido mais unidos, como o tempo passou rápido, como dos 20 pros 40
foi um pulo. O que parecia eterno foi um sopro, um sopro de vida. Lágrimas
começam a cair, pega na mão do seu irmão, olha bem fundo nos seus olhos e diz.,
- Não Marcelo. O
Joãozinho não!!!
Talvez o botão fosse o último elo, ou o único, a ligar os dois irmãos.
ResponderExcluirPara que decretar a morte do Joãozinho?
Melhor assim.
Elos devem permanecer vivos.
Muito feliz com esta fornada do Biscoito. Agradável elo que nos mantém, leitores, ligados a uma boa prosa.
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