ENQUANTO NÃO VEM A BANDEIRA 2
Entrei no táxi 139. As minhas corridas não costumam ser com esse motorista, por isso, ao afivelar o cinto, informei que o meu destino era a rua Modigliani.
-Eu sei.
Tem boa memória. - deduzi.
Não falava muito e eu, que vinha de uma viagem irritante de metrô, perdi a vontade de garrular. Emudecido, tornei-me mais observador e vislumbrei um diminuto adesivo do Mickey no painel. Essa figura do Mickey é de que época? - indaguei de mim mesmo. A pergunta era pertinente, pois o Mickey já se apresentou com umas sete características corporais pelo menos. A primeira característica foi uma rabo tão comprido quanto os dos políticos brasileiros que se dizem éticos, e a última, a terceira dimensão.
Como o taxista não falava, continuei pensando no Mickey e na declaração do seu criador, Walt Disney, com a esposa ao lado: “Nunca liguei para garotas e continuo não ligando. Amo Mickey Mouse mais do que qualquer mulher que conheci.”
O personagem surgiu em 18 de novembro de 1928, e como a lei de proteção dos direitos autorais dura 70 anos, nos Estados Unidos, o Mickey Mouse estaria sob domínio público em 18 de novembro de 1998, mas o congresso americano estendeu por mais vinte anos a lei do copyright, e muitas obras e personagens não caíram no domínio público, como foi o caso do camundongo do Walt Disney que, com isso, exigirá direitos autorais até 18 de novembro de 2028 de quem usar sua imagem.
Esse taxista que se cuide para não pagar direitos autorais sobre o Mickey Mouse do painel do carro.
-Chegamos. - avisou.
Saltei depois de pagar a corrida, é claro, e o meu gesto subsequente foi pegar a chave do portão da entrada. Demorando nessa busca, estranhei, olhando de esguelha, que o táxi não partia. Olhei para o interior do veículo, e vi que o taxista fazia anotações num caderno de capa preta.
Será que ele também escreve uma espécie de Biscoito Molhado registrando os acontecimentos de cada viagem? - perguntei-me.
Bem, se assim for, talvez escreva agora sobre o Pato Donald, o Tio Patinhas ou o Pateta.
No dia que se seguiu, entrei no 158; era o táxi do Paizão, aquele que, na hora do apagão, transportava a filhona para a Praça Saens Peña.
-Calor... - queixei-me ao sentar no banco do carona.
-Não adianta, temos de aguentar até abril.- expressou, na voz pausada, a sua conformidade.
-No hemisfério norte, já esfria e os casos de gripe suína aumentaram.
-Aumentaram? - mostrou-se perplexo.
-O senhor lembra como foi o inverno aqui?... No início de agosto, havia alguns casos de suína que a boataria centuplicou e as férias escolares foram prorrogadas.
-Não é gripe suína, não. Os americanos inventaram esse nome para dizer que a gripe veio do México. Esta gripe é a espanhola. Sabe por que eu sei disso?
Era uma pergunta retórica, pois ele não me deixava abrir a boca.
-Transportei, certa vez, uma passageira que trabalhava num laboratório e ela me revelou que a gripe era a espanhola.
-Eu recebi uma mensagem eletrônica em que um casal declarava que, ao jogar fora o arquivo da revista Saúde, depararam-se com uma edição do ano 2000, que profetizava a vinda de um vírus com todas as características da Espanhola pós-Primeira Guerra Mundial. Páginas escaneadas da revista daquele ano confirmavam as palavras do casal.
-Eu sempre tomei a injeção dos idosos, mas, quando implantaram a vacinação, disseram que era um plano dos Estados Unidos para matar os velhinhos.
-Lembro-me disso. - aparteei.
-Um dias, duas passageiras me informaram que tinham de tomar essa vacina dos idosos para permitirem que elas viajassem para o exterior. Vacinei-me, então, sem sustos.
-O brasileiro quase derrubou um governo, na República Velha, para não ser vacinado.
-Não me diga.
E eu não disse, pois ele já estacionara o táxi defronte à minha casa.
Outro dia, outra corrida.
Divisei da rampa o 017- aquele do taxista do dedo do arqueiro inglês - despontando na fila. Encurtei as passadas para ser ultrapassado por alguém mais necessitado de táxi, porém todos rumaram para o ponto de ônibus. Fazer o quê?...
-Olha só!... Olha! A pista é suficiente para passarem três ônibus, mas ele tem justamente de passar no cantinho, quase roçando no meu carro. - ranzinzou, mal passara a segunda marcha do seu carro para rumar para a rua Modigliani.
Depois de percorrer uns cem metros atrás do motorista que passara pelo cantinho, suavizou a voz:
-Ele está com problema no carro.
-A direção está puxando para a esquerda?- perguntei.
-Isso.
Mais quinhentos metros e outro problema para encruar ainda mais a inquietude do 017:
-Olha! Liga o pisca alerta e a gente fica sem saber se vai parar, dobrar à esquerda ou à direita.
Tratava-se de um colega seu de táxi, não da cooperativa Metrô, e ainda assim, ele afundou a mão na buzina.
-Ainda bem que essa buzina provoca menos barulho do que um bode velho asmático.- pensei com meus botões.
-Você leu o caderno de ecologia do Globo de hoje?- perguntou-me, quando não viu mais carro algum com dificuldades à sua frente.
-A Marina Silva saiu do governo porque a ecologia não recebia a atenção devida, depois que ela apareceu com quase 10% das intenções de votos, até a Dilma Rousseff se tornou ecologista.
-Ele não considerou o meu aparte, e prosseguiu:
-Pelo que disse este caderno do Globo, em 2050 a vida será insuportável. Eu tenho 58 anos, até lá eu estarei morto, pois não vou chegar aos 108 anos de idade.
-Quem foi o professor de matemática dele? - perguntei-me.
-Não é o fato de não estarmos vivos, em 2050, que vamos poluir. - indignou-se mais uma vez.
Tomei a palavra:
-Segundo o Delfim Netto, o Brasil, com o atual sistema de seguridade social e previdência acaba antes. Aposenta-se no judiciário brasileiro com o salário médio 30 vezes maior do que o do INSS, no legislativo, 20 vezes mais, e, no executivo, 14 vezes mais. Em 2035, segundo o Delfim, serão tantos os velhos aposentados que os poucos brasileiros na ativa não conseguirão sustentar os aposentados.
-E tem solução?
-Convocar os velhinhos para tomar uma vacina americana contra a gripe.
-Rua Modigliani. - informou.