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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

3017 - Era uma vez...



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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5266L                                Data: 22 de fevereiro de 2016

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIII

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CIRANDA, CIRANDINHA

É o sinal dos tempos. É a vida moderna e a força da tecnologia que dão cabo de tudo. Fico atento ao que acontece com as crianças, que antes viviam uma infância criativa e encantada. Procuro pelos passatempos de outrora, determinantes até a adolescência. Eram todos ágeis e saudáveis, fazendo com que a petizada se exercitasse, ao mesmo tempo em que brincava.

E, como um “proustiano”, acho uma Madeleine em cada brinquedo ou brincadeira que relembro.

Como seria bom ver as crianças de agora pulando corda, jogando bolinhas de gude, peteca, bilboquê, correndo nos carrinhos de rolimãs, brincando de caminhas de gato com pedaços de barbante e muitas outras brincadeiras que me fogem à lembrança.
Lembro também das amarelinhas e caracóis, riscados a giz no chão, fazendo as crianças saírem pulando a cada espaço desenhado. E todas cresciam com a sonoridade das músicas e letras bem construídas das cirandas.

Tudo isso foi tragado por aparelhinhos que cabem nas palmas das mãos, como IPOD, DS, TABLET, CELULARES que usam, abusam e não se lambuzam, porque manuseiam essas peças em ambiente interno, longe do sol, sentados, numa imobilidade, como se inválidos fossem.

De uma coisa eu tenho certeza: todas as brincadeiras que aqui apontei e outras tantas que me fugiram da lembrança, as harmoniosas cirandas que não enumerei e nem cantei – encontram-se muito bem guardadas pelas tradições, costumes e regionalidades, princípios básicos que vão eternizá-las no folclore brasileiro. Mas o que me causa um profundo lamento é o sumiço e o desinteresse pelos livros de história. 

Por causa disto, em um protesto instintivo, delirando, imagino e elucubro uma conversa que começa assim:
- Eu fiz magistério e casei-me com um garoto do Colégio Militar, mas o danado do garoto não sabia nem beijar... Hoje estou divorciada. E você, virou o quê?
- Eu nunca fui tarado, os críticos confundiram antropofagia com pedofilia. Hoje sou vegetariano, diplomado em psicologia e trabalho numa clínica geriátrica.

Este diálogo aconteceu no encontro fora do livro, entre Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau, numa noite de autógrafos, em uma livraria do Rio de Janeiro – onde os ouvintes, encantados com o que presenciavam, disseram que os dois personagens fizeram uma análise da situação atual, com tiradas e conclusões dignas, deixando para todos a impressão de serem profundos estudiosos da Sociologia moderna.

Um dos que lá estavam notou a emoção do Lobo Mau quando soube que a Vovó já havia falecido, abandonada em um asilo de instalações precárias. Discursou de forma veemente, colocando em dúvida a proposta do SUS (Sistema Único de Saúde), reconhecendo que, de fato, o governo não respeita os idosos.

Sobre as florestas, coube a Chapeuzinho Vermelho, como herdeira, denunciar as devastações que vêm ocorrendo em toda área verde. Atacou as empresas madeireiras, responsabilizando as autoridades pela omissão quanto ao reflorestamento.
Em um dado momento, puseram-se a falar sobre as outras histórias.

Soube-se que Pinóquio fez plástica no nariz, formou-se em Direito e processou Gepeto. Branca de Neve tornou-se manicure e rompeu com seis dos Anões, pois o sétimo já havia morrido. Os Três Porquinhos, durante muito tempo, serviram de garotos propaganda de um supermercado, que abriu falência, deixando os pobres suínos sumidos e mal pagos. Cinderela, essa só Deus! Iludida com a promessa de se tornar modelo e manequim, foi vista com roupas minúsculas, andando pela noite na Avenida Atlântica... Informaram que Dona Benta e sua turma foram substituídas por enlatados, com especialidade em violência.

Os que estavam presentes ao encontro aplaudiram quando Chapeuzinho Vermelho reproduziu parte do clássico diálogo, perguntando:
- Para que servem ainda essas suas orelhas, Lobo Mau?
 E o Lobo, jogando com as palavras, respondeu:
- Por causa dos grandes imbecis e dos altos decibéis, elas agora só me servem para sustentar um “Viennatone”...

E dizem ainda que muito mais eles disseram. Que lamentam ter saído das páginas encantadas dos livros infantis; ter sido trocados por outras formas de lazer, as quais atuam de maneira implacável, tirando da criança o lado lúdico da imaginação.

Os depoimentos não pararam por aí.  O que se conta que eles contaram, dá para fazer outro conto.

Mas aí, digo eu:
- Quem quiser que conte outro...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

3016 - O tique-taque da relógia


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5265L                                Data: 15 de fevereiro de 2016

 

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIII

 

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A MULHER, O TEMPO E O ESPELHO

 

Estatísticas indicam que aumentou a perspectiva de vida da população brasileira. Que bom! Há que se ter mais tempo para se procurar, se encontrar e, finalmente, se perder nas delícias do que procurou.

Mas por onde andam a sensualidade de Marília, a candura de Lídice, a ousadia de Cristina e o fogo de Berenice e, acima de tudo, como se encontram os hormônios e a libido de todas elas?

Penso nas mulheres que enviuvaram, nas que, apesar das bodas comemoradas, se separaram, pelas rotinas desgastantes e nas outras, que, após criarem e formarem seus filhos, encerraram desejos ainda latentes.

São questionamentos que me tomam, como se eu fosse entrevistador de institutos de pesquisas sobre comportamentos de mulheres que se encontram nas faixas dos cinquenta a setenta anos de idade. 

Elas logo se queixam que a causa de certos desinteresses é a lida que enfrentam. Defendem-se com argumentos que antes, quando mais jovens, não eram diagnosticados, por essa variedade de males que apareceram com a vida moderna. Padecem de tantos, que possuem síndromes para todos os tipos de especialistas.

Por que isso me preocupa de tal modo a entrar neste tema? Será porque fazem parte de um grupo que me desperta interesse e curiosidade?

A grande verdade é que a vida continua para elas com todas as reações físicas, biológicas e metafísicas, só que com outra performance e com visão diferente.

Então elas abafam, escondem, desprezam, isso quando não abolem definitivamente o que não deveria ser abolido.

A própria Medicina, que concluiu que aqueles conjuntos de sintomas mostravam uma nova enfermidade, ela mesma dará conta de curá-los, com a ajuda abundante da indústria farmacêutica.

Sempre que posso e, quando a consideração e a intimidade permitem, sugiro que não se recolham, muito pelo contrário, deem-se, é lógico, a quem de direito ou a alguém que se habilite com o devido respeito e, que depois de habilitado, chegue sem cerimônia e já podendo faltar um pouco com o empecilho do respeito.

Mas outra reflexão me leva à conclusão de que o grande vilão nessa trajetória é a ação do tempo. Ele vem que vem, com tudo, implacável e, às vezes, cruel.

As marcas que ele produz e a experiência que certas mulheres mostram, dão-lhes autoridades que talvez não quisessem, pois lhes tiram também a mansidão da presa, em troca do ímpeto bravio do predador. Mas, de qualquer forma, fazem todas se encontrarem no mesmo patamar etário, conhecidas carinhosamente como “coroas”, que ainda “dão um caldo” e “pegam uma meia sola”. Em síntese, valem a pena.

Precisamos da consciência de que, ficar mais tempo na festa e no espetáculo da vida, é um bônus que haverá de ser bem usado.

O espelho só reflete a estampa que lhe põem na frente – não consegue mostrar a beleza e a disposição do corpo e da cabeça que lhe dão as costas e saem inseguras.

Cecília Meireles, em “O retrato”, cunhou esta pérola: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”

É apenas poesia, ela viveu a vida toda com encantos e graça que a época ditava.

As mulheres me tiram o sono, me adormecem e me despertam. Em qualquer desses estágios, me sinto bem.

Para que tudo que aqui foi dito possa aparecer bendito, encerro com Artur Azevedo:

“Vem ! ... que o sangue férvido reaja !

Amemo-nos, amor, que a vida é breve,

E outra vida melhor talvez não haja!”

 

 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

3015 - sem lenço e sem documento


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O BISCOITO MOLHADO
 

Edição 5264SX                                 Data: 12 de fevereiro de 2016

 

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIII

 
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GÊNIO ATRAPALHADO


- Franz Peter Schubert! Extraordinário compositor!

- Perdão... Mas eu penso que não conheço o amigo...

-Certo... Certo... O senhor não me conhece... Permita que eu me apresente. Meu nome é Carlos Eduardo Nascimento. Muitos me conhecem pelo apelido de “Biscoito”. Isso porque sou o criador, diretor e redator - chefe de um jornal chamado “Biscoito Molhado”, que circula na Internet...

- Internet?

- Peço desculpas, Sr. Schubert, certamente o senhor não sabe o que é Internet...

-Realmente não sei, Sr. Biscoito. Posso chamá-lo por esse título que o senhor ostenta? Desconheço o que venha a ser essa tal de Internet. E ouso dizer que sou um sujeito bem informado. Afinal, durante muitos anos fui professor de uma escola que meu pai fundou nas proximidades de Viena. Essa matéria, que eu lembre, jamais foi lá estudada... A propósito, devo dizer que não gostaria de abordar esse período de minha vida. Eu só pensava em música... Dar aulas, para mim, significava um sacrifício terrível...

- Posso imaginar, Franz. Posso chamá-lo assim?

- Claro, Biscoito, fique à vontade. Mas, a que devo o entusiasmo do amigo? Frequentou minhas aulas?

- Não, Franz! Certamente não! Você nasceu em 1797. Minha passagem pelos bancos escolares só aconteceria século e meio depois!... Sou, na realidade, um ardoroso admirador de sua música! Eu e milhões de pessoas fascinadas por suas belíssimas composições.

- Biscoito, você me envaidece, mas ao mesmo tempo me surpreende. Confere-me um tratamento que só pode ser atribuído a um Mozart, um Beethoven...

- Extraordinários compositores, Franz! Certamente são dignos de minha imensa admiração. Mas o amigo também foi um dos grandes! Ainda que algumas circunstâncias tenham contribuído para que o reconhecimento de sua obra extraordinária tenha demorado a acontecer.

- Circunstâncias? Como assim?

- Por favor, Franz, não fique aborrecido comigo. Mas, já que você pergunta, permita-me comentar. Em primeiro lugar, vale observar que o amigo viveu muito pouco. Entre 1797 e 1828... São apenas 31 anos! É certo que, ainda assim, produziu uma obra vastíssima. Mas, o que teria feito se tivesse vivido 50, 60 anos?

- Não consigo nem imaginar... Lembrando que Mozart também teve uma vida breve. Morreu com 35 anos deidade...

- É certo que vivi pouco. Mas que culpa eu tenho?

- Nenhuma, Franz. É claro que... nenhuma. Mas os seus biógrafos apontam, além disso, mais uma série de problemas...
 
- De que tipo?

- Peço desculpas pela sinceridade, Franz. Mas os estudiosos consideram que durante muito tempo você foi subavaliado em relação à real dimensão do seu talento. O que teria decorrido da maneira descompromissada e até mesmo irresponsável com que o amigo teria conduzido sua atividade de compositor.

- Como assim?

- O que se diz é que você compunha como se estivesse em transe. Em qualquer lugar, a qualquer hora. Não dava a devida importância ao que produzia... Esquecia manuscritos em bancos de jardim, mesas de bares, casas de amigos...

- Excelentes amigos! Jamais permitiram que eu passasse dificuldades...

- Todos reconhecem isso, Franz. O problema é que essa falta de compromisso foi prejudicial ao reconhecimento de sua obra. Você tem conhecimento de que manuscritos importantíssimos de composições de sua autoria somente foram localizados muitos anos depois da sua morte? Dez anos depois do seu falecimento, o grande Robert Schumann encontrou em Viena o rascunho empoeirado da sua belíssima sinfonia em dó maior, conhecida como “A Grande”. Schumann levou essas anotações para Leipzig e a sinfonia foi estreada por Felix Mendelssohn. Sucesso extraordinário! Além disso, uma quantidade substancial de suas anotações foi localizada pelo grande pesquisador Sir George Grove, em 1867. Sem esse dedicado trabalho, jamais teríamos tomado conhecimento de um tesouro precioso!

- Biscoito, acho que em tudo isso existe certo exagero...

- Franz, vou provar que não existe exagero. O amigo ficaria chateado se eu descrevesse a situação de sua casa, por ocasião do seu falecimento?

- Prossiga...

- Pois muito bem. Os emissários da justiça que compareceram à sua modestíssima residência para fazer um levantamento dos seus bens calcularam que eles totalizavam míseros 63 florins! Uma enorme quantidade de preciosos manuscritos musicais foi avaliada em 10 florins. Alguns objetos domésticos e roupas muito usadas valeriam os demais 53 florins. Seu piano, Franz, não constou desse inventário. Ele era alugado, às expensas de um de seus dedicados amigos...

- Valores materiais... Valores materiais... Eu estava preocupado exclusivamente com minha música...

- Reconheço esse mérito, Franz. Mas você poderia ter tomado um pouco mais de cuidado! Por sorte temos acesso, nos dias de hoje, às mais de 600 canções que você compôs. Consta que oitenta delas colocavam música em textos de Goethe, a quem esse material foi encaminhado. Ele se pronunciou a respeito?

- Nada, Biscoito, nem uma palavra... Consta que teria feito umas poucas anotações à margem de alguns trabalhos... Meus amigos, sempre me prestigiando, atribuíram esse silêncio ao fato de Goethe não entender nada de música...

- Faz sentido, Franz, faz sentido. Mas esclareça, por favor, uma dúvida que sempre me atormentou. Qual a explicação para a sua “Sinfonia Inacabada”? Como você justifica não produzir o movimento que, segundo as convenções, deixaria a obra completa?

- Biscoito, finalmente você me propõe uma questão que estou apto a esclarecer! Fui diagnosticado com sífilis um mês depois de começar a trabalhar na sinfonia. Eu estava condenado! Não fazia sentido concluí-la...

- Bem entendido, Franz! Percebo que sua vida envolveu muitos problemas, muitas controvérsias. De qualquer forma, sinto-me agraciado com o conhecimento que tenho de sua obra. Seu ciclo de canções, por exemplo, mereceu gravações extraordinárias. Minhas favoritas envolvem o barítono Dietrich Fischer - Dieskau e o notável pianista Gerald Moore. Coisa dos deuses. Não canso de ouvir...

- Gravações? O que é isso?

 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

3014 - Ora bolas! Outra reunião!


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5263L                                Data: 11 de fevereiro de 2016

 

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIII

 

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R E U N I Ã O

 

Reuniões parecem ser imprescindíveis, mas francamente não as aguento.

Existem reuniões para simplesmente informar e outras para que grandes decisões sejam tomadas. Mas, tanto umas quanto outras, me incomodavam.

Não tinha cargo de tamanha importância e nunca fui pessoa de alçadas significativas. Entretanto, virava e mexia, lá estava eu reunido...

Havia época em que me convocavam para uma na segunda-feira e outra para quarta e, nunca esquecendo de que, de quinze em quinze dias, havia as que eram em São Paulo, sempre às sextas-feiras, quando os nevoeiros do Rio de Janeiro, mais as chuvas constantes da Terra da Garoa, complicavam os voos e tornavam as esperadas vésperas de sábado em dias nefastos.

Tem gente que gostava de apregoar em alto e bom som que está com a agenda tomada, sentindo-se muito importante por causa disso, ficando toda prosa, embora, na maioria das vezes, entrasse na reunião como “cabra macho” e saísse como “bode expiatório”. Assim mesmo, viviam envaidecidos por participarem desse grupo supostamente seleto.

Continuo achando que a maioria dessas reuniões deveriam ser desmarcadas, inclusive as ministeriais e serem substituídas por circulares normativas.

Há reuniões marcadas para que relevantes providências sejam discutidas, só que tudo já foi decidido antes das mesmas começarem. Participei de uma que começou assim:

- Estamos aqui reunidos, mas por motivo de força maior, esta reunião fica suspensa.

Trabalhei numa célula que, quando foi criada, éramos meu chefe e eu. Mesmo assim, ele marcou várias reuniões e, por incrível que pareça, todas no auditório.

Banalidades e coisas sem importância, já vi discutirem à exaustão.  Minha área de trabalho era segurança e fraude, numa época em que o “clone de cartão”, “chupa-cabra” e “anzol” aconteciam em escalas crescentes.

Foi uma luta fazer a diretoria entender que, ao invés de nos reunirmos, melhor seria a interação entre os bancos lesados, através de e-mail, trocando informações e fitas que mostrassem a maneira como operavam e os rostos dos habilidosos malandros.

Foi um trabalho árduo que, junto com delegacias de policias especializadas, conseguimos combater. Hoje ainda existem, só que em números toleráveis.

Atualmente, apesar de aposentado, ainda sou convidado para algumas reuniões, a fim de mostrar o que for intuitivo e em que a nossa velha experiência pode ajudar os novos colegas, hoje em atividade, oriundos de faculdades que os formam em “segurança”.

O tempo não minimizou a birra que tenho com as reuniões. Agora mesmo, me telefonaram para uma, com o grupo do Tênis de Mesa, para decidir o que fazer com as bolinhas de celuloide que, com o advento das bolas de plástico, podem ficar obsoletas. (*)

E, no elevador do prédio onde moro, há uma convocação para decidir sobre o cão que late a noite toda, em um apartamento cujo dono do imóvel, que também tem o cachorro, é surdo e dorme tranquilamente, num sono profundo. Haja paciência! ... .

E juro a vocês que, parte desta crônica, fiz numa reunião, na qual uns cochilavam e outros até dormiam.

 

(*) O seu O BISCOITO MOLHADO também é cultura desportiva – nenhum leitor jamais suspeitaria dessa condição desfavorável para as tradicionais bolinhas. Quando se amassava uma, levava a dita para a panela com água fervendo e pop! A bola voltava a ser bola.

 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

3013 - bate-bola com Godô


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O BISCOITO MOLHADO
 

Edição 5262SX                                 Data:  04 de fevereiro de 2016

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIII

 
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GODOFREDO FORMENTI

  
Morreu Godofredo Formenti, o “Godô”. Li no obituário de “O Globo”, na edição de 26 de janeiro. Tomei conhecimento também, poucos dias depois, do falecimento de Luiz Felipe Lampreia, um grande diplomata.

São perdas que se acumulam. Partem figuras sérias, interessantes e aqui permanece, em plantão irremovível, uma legião de vagabundos, ladrões e iletrados que infelicita o país com persistência exemplar. Aquartelados, majoritariamente, em Brasília e no ABC paulista.

Godofredo Formenti foi um premiado arquiteto. Viveu 93 anos, curtindo intensamente o bairro do Leblon, uma de suas mais fortes paixões. Sua história começa a ser contada com seu avô, o italiano Cesare Formenti. Cesare chegou ao Rio de Janeiro em 1910. Fazia parte de sua família o filho Gastão, nascido em Guaratinguetá em junho de 1894.

Cantor lírico amador, Cesare Formenti foi um excepcional criador de vitrais e mosaicos. Com a ajuda de Gastão, produziu obras maravilhosas. Contratada pelo arquiteto Archimedes Memória, a dupla se superou na sede do Jockey Clube Brasileiro e no Palácio Tiradentes. Sua arte valorizou dezenas de prédios públicos, palacetes e igrejas, com destaque para o Clube Naval, Instituto Osvaldo Cruz, Centro Cultural da Justiça e igrejas do Colégio Santo Inácio e dos Capuchinhos.

O ano de 1927 encontra Gastão Formenti voltado para outra atividade em que alcançou sucesso imediato. Reconhecido como grande pintor, excepcional paisagista, ele abraça a carreira de cantor. Os estudiosos consideram que ele foi o primeiro beneficiário de evoluções importantes ocorridas na indústria fonográfica.

Novos métodos de gravação permitiram que timbres mais suaves fossem suficientes para “ferir” o acetato. Vozes portentosas, como a de Vicente Celestino, deixavam de ser um requisito.

A trajetória do cantor Gastão Formenti transcorreu de forma meteórica. Em 1927 aconteceu sua primeira gravação para a Odeon. Ao lado de Carmen Miranda, foi o primeiro cantor a assinar contrato com uma estação de rádio, a Mayrink Veiga, em 1930. Tudo que gravava alcançava grande sucesso. Foi o que aconteceu com “Ontem ao luar” (Catulo da Paixão Cearense e Pedro de Alcântara), "Casa de Caboclo" (Heckel Tavares e Luís Peixoto ) e " Maringá " (Heckel Tavares).

Gravou 153 discos de 78 rotações. No total, 299 músicas. Chegada a década de 40, Gastão Formenti passa a se dedicar mais intensamente à pintura. Em certa ocasião, uma senhorinha indagou:

- Quer dizer, Sr. Formenti, que o senhor pinta quadros, além de cantar?

A resposta veio rápida:

- Não é bem assim, minha senhora. Eu sou um pintor que também canta...

No seu excelente livro “Paulo Fortes - um brasileiro na ópera”, Rogério Barbosa Lima registra a amizade de Gastão Formenti com o engenheiro Auto Barata Fortes, pai de Paulo Fortes. Frequentava a casa do Dr. Barata, muitas vezes para participar de imperdíveis saraus. Nessas ocasiões incentivava o garoto Paulo a cantar. O barítono se recorda:

-... ele elogiava minha voz e meu modo de cantar. Chegou a me ensinar algumas músicas....

Muitos anos depois, Paulo Fortes, já ostentando o status de primeiro barítono do Teatro Municipal, atravessa a Galeria dos Empregados do Comércio, no centro do Rio de Janeiro. Em sua direção caminham Gastão Formenti e Silvio Vieira. Este último também um importante barítono, antecessor de Paulo Fortes nas temporadas do Teatro Municipal. Tremendo gozador, Silvio ordena:

- Imita o Formenti, Paulo! Imita o Formenti!

Reconhecido por seu talento de imitador, especializado em Beniamino Gigli e Tito Schipa, Paulo resiste:

- Aqui não, Silvio... Aqui não...

Silvio Vieira não aceita os argumentos de Paulo. O máximo que concede é transferir a performance para o interior de uma loja. Vencido pela teimosia do oponente, Paulo imita Gastão Formenti cantando “Maringá”. A galeria botou gente pelo ladrão...

 

Pretendi homenagear Godofredo Formenti, mas até aqui meus escritos só mencionaram seu avô Cesare, e seu pai famoso, Gastão Formenti. Na realidade, foram apenas duas as ocasiões em que encontrei o “Godô”.

Uma delas, no café da Livraria Argumento, no Leblon, quando Rogério Barbosa Lima me apresentou a primeira versão da biografia de meu pai. Na segunda, quando caminhava pelo Leblon na companhia de Paulo Fortes e eles se cumprimentaram. Na ocasião fui devidamente informado sobre a importância da árvore genealógica daquela simpática figura.

Minha homenagem ao “Godô”, que ora retomo, se prende a uma circunstância muito especial. Godofredo Formenti, nos anos 50 e 60, foi goleiro do Grêmio, o time de futebol de praia do Leblon pelo qual eu torcia freneticamente.

Falo de futebol de praia de verdade. Onze contra onze. Não a coisa ridícula em que esse esporte veio a se transformar. Falo do futebol de praia em que pontificaram jogadores incríveis, do porte de Raphael de Almeida Magalhães, Paulo Tovar, Geraldo “Mãozinha”, Santoro, Ronaldo, Ricardo e Rogério Barbosa Lima, Gugu, Lula, Zé Brito...

A versão moderna do futebol de praia, lamentavelmente incensada pelo craque Junior, da seleção brasileira e que, em passado mais remoto, defendeu as cores do Juventus, do Posto 3, é um jogo ridículo. Integra o FEBEAPÁ (*) de Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, por sinal também ele um craque da praia.

Da mesma maneira que os locutores esportivos não falam mais em passe, preferindo elogiar quem comete uma “assistência”; que o "Big Brother" bate recordes de audiência; ou que analfabetos fazem fortuna proferindo palestras para empresários idiotizados, esse futebol de praia "de mesa” ocupa, também, lugar de destaque no acervo avassalador de bobagens que empolga nos dias de hoje a rafameia verde e amarela.

Tenho para mim que nesse momento o “Godô”, craque do Santo Inácio nos ano 30, já está tendo uma boa conversa com Raphael de Almeida Magalhães, outro expoente do ludopédio inaciano (**).

(*) Fervoroso adepto do estilo Rosa Griecco, o redator do seu O BISCOITO MOLHADO introduz na sua elaborada prosa, palavras que poderão passar como codificadas por quem não tenha um Google à mão. Daí, cabe ressaltar que, sobre FEBEAPÁ, melhor do que definir, é copiar:

FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assola o País tinha como característica simular as notas jornalísticas, parecendo noticiário sério. Era uma forma de criticar a repressão militar já presente nos primeiros Atos Institucionais (que tinham a sugestiva sigla de AI). Um deles noticiou a decisão da ditadura militar de mandar prender o autor grego Sófocles, que morreu há séculos, por causa do conteúdo subversivo de uma peça encenada na ocasião.

 (**) Ludopédio Inaciano é jogo de futebol entre alunos do Santo Inácio. Se fosse Beneditino seria jogo de botão.