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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

3011 - SX a BIC azul-claro


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5260SX                                 Data:  29 de janeiro de 2016

 

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ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA

 
Estávamos tranquilamente no BRT do Céu, Simonsen, Paulo Fortes, Cole, Biscoito e eu, quando ingressamos na Avenida Suburbana, não renomeada de Helder Câmara, visto que ele aqui é vivo e não deve ser homenageado. Na altura de Maria da Graça, o coletivo deu uma meia parada com a porta aberta e o Biscoito não se conteve:

- Gente, aqui é o meu lugar, venham comigo!

Indecisos frente àquela ordem inusitada, vinda de personalidade que nem sempre sequer fala o que pensa, titubeamos o suficiente para não descer e escutar um PIMBA! E vimos nosso colega ser arremessado 200 metros por um Fiat 147 azul.

- Foi um Deus nos acuda, na acepção da palavra, mas antes que o próprio Deus acudisse, apareceu um guarda de trânsito que era vermelho como um camarão e tinha um discreto rabo, também vermelho, serpenteando entre as pernas.

Desconfiamos que pudesse ser o Diabo em pessoa, mas Simonsen, ex-aluno do Santo Inácio, além de primeiro colocado, sentenciou: aquilo não é um rabo, é só uma fantasia neste Carnaval em que moramos!

Simonsen enganou-se mais uma vez, diria o Delfim, que ainda não chegou e, portanto, nada ouvimos. E era mesmo o Diabo, que levou a todos, Fiat 147, motorista e atropelado – no caso, o nosso Biscoito.

Era agora o emprego literal de: “... e o Diabo que os carregue”, que se aplica a qualquer acidente de trânsito que ocorra no Céu, onde tudo tem que ser perfeito. Em três minutos, toda a cena se desfez.

E nós, no ônibus, ficamos alvoroçados, lógico, mas um querubim chegou voando, com uma mão a pedir tranquilidade e disse: “É assim, aqui no Céu. Quem trata das ocorrências, julgamentos e punições é o Lá de Baixo, pois é Lá Embaixo que ficam esses departamentos, digamos, policialescos, com todas essas classes profissionais que não existem no Cá em Cima.”

-Sim, disse Simonsen, disciplinado, mas como poderemos saber o que acontecerá ao nosso amigo?

- Queremos saber, queremos depor... já fui testemunha de inúmeros casos terrenos de aposentadorias e sei como manusear os argumentos favoráveis – trombeteou, com pausas precisas, a voz poderosa de Paulo Fortes.

-E se ele demorar? Poderá ficar por lá forever and a day, emendou sem traduzir, Cole Porter, capturando da minha canção Love is Here to Stay, a melhor frase...

Ante tal turbilhão de vontades, calei-me, afinal tudo já tinha sido dito.

- Nada posso garantir, mantenham a calma... – e o querubim sumiu, num cintilante fremir de suas quatro asas. Desmaterializou-se simplesmente.

Os dias se passaram no Céu sem passeios de BRT, as noites sem cantorias, sem serenatas, aquela turma outrora animada agora esmaecia minuto a minuto, quem os conhecesse diagnosticaria uma zica de tristeza coletiva, sem direito a SUS.

Uma tarde, o Sol se preparava para colorir três nuvens solitárias e apareceu um serafim em altíssima velocidade. Mal pousou, recolheu suas seis asas e ainda ofegante, balbuciou:

- Puf-puf, o Biscoito, amigo de vocês vai, puf-puf, ser solto. Deve chegar na próxima subida, puf-puf, do Lá de Baixo – ninguém no Céu fala Diabo, nem anjo, nem arcanjo, quanto mais um reles serafim – junto com uns problemáticos, puf-puf-puf .

Ficamos felizes pela notícia, mas apreensivos com a inclusão de uma alma sã amiga nossa com um ser problemático. Certamente, novas histórias apareceriam, menos mal.

Não perderíamos por esperar, vimos dois vultos na tarde seguinte; vindo a pé, o Biscoito estava trazendo um problemático até nós.

Era gringo e com um sorriso enigmático na cabeça totalmente raspada, se apresentou, já que ninguém o conhecia: Farrokh Bulsara. Biscoito retirara-se para um canto e eu juro que ria por dentro do bigode; fui lá e perguntei:

- Quem é a bichona, Biscoito? Ele me olhou meio incrédulo, como se eu não fosse capaz de achar outra além do Cole e meio aborrecido, com a minha desnecessária demonstração de homofobia, em completo desuso naquelas paragens celestiais.

- Não se preocupe, George, você ainda não o conhece, mas vai gostar.

Nisso, um dueto mais do que improvável, Paulo Fortes e Freddie Mercury, iniciou um Anything Goes de arrepiar Bing Crosby. Não se sabe de onde, uma multidão de jovens overdosados adentrou a nossa esquina e, com canetas BIC azul celeste, cutucavam o Freddie em busca de autógrafos.

- Nem aqui eu escapo, disse o Freddie desconsolado.

- E a nossa paz se foi, emendou um Cole Porter enciumado.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

3010 - SX O CD de Cole

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O BISCOITO MOLHADO
 
Edição 5259SX                                 Data:  26 de janeiro de 2016
 
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BOA CONVERSA COM COLE PORTER
  
- Biscoito!
 
- Cole Porter!
 
- Paulo Fortes me falou de você... Disse que o amigo é fascinado pelas minhas canções... O que me deixa envaidecido...
 
- O que o Paulo disse é a pura verdade! Adoro seus musicais! Especialmente aqueles que resultaram em grandes produções para o cinema... Fred Astaire e Eleanor Powell dançando a trilha sonora de "Rosalie"... Isso jamais me saiu da cabeça!
 
- Parabéns pelo bom gosto, Biscoito! Que dupla de bailarinos era aquela! Mas vou te confidenciar uma coisa, pedindo ao amigo, desde já, a devida reserva... Naquelas filmagens percebi que Fred Astaire e Eleanor Powell não se suportavam!
 
- Não acredito, Sr. Porter! Como pode ser? Não conheço nada que transmita maior paixão do que a dança daqueles artistas maravilhosos...
 
- É o que parece, Biscoito. É o que parece. Mas a realidade é outra. Posso explicar. "Rosalie", que o amigo mencionou, foi uma comédia musical que alcançou incrível sucesso na Broadway, em 1928. Sua grande estrela era Marilyn Miller, grande atração de bilheteria na época. O enredo: uma princesa europeia visita os Estados Unidos e se apaixona por um cadete da Academia Militar de West Point. Uma história irresistível para as plateias norte-americanas! A música, produzida por George Gershwin e Sigmund Romberg, também era belíssima. Nove anos mais tarde, os chefões de Hollywood decidiram que "Rosalie" deveria chegar ao cinema, com um elenco bastante reformulado e com músicas inteiramente novas, que fiquei encarregado de compor.
 
Idiossincrasias hollywoodianas... Afinal, a partitura de George Gershwin era maravilhosa... Mas, voltando ao que interessa: o que todos na época perceberam é que os gigantescos investimentos destinados a essa produção atendiam por um nome: Eleanor Powell. Ela, que era considerada a maior sapateadora do mundo, assinara em 1935 um contrato milionário com a Metro. Seus filmes rendiam rios de dinheiro. Para as filmagens de "Rosalie" foram contratados os maiores cartazes da época: James Stewart, Robert Taylor, George Murphy, Nelson Eddy, Robert Young... e Fred Astaire. É claro que Fred Astaire, na condição de um quase coadjuvante, não estava se sentindo confortável. Além disso, espalhou-se a lenda de que Eleanor Powell era a única "partner" realmente temida pelo extraordinário dançarino. Comentava-se que o dinamismo e a força dos movimentos da estrela causavam-lhe medo. Muitos concluíram que somente ela conseguia se ombrear a Fred Astaire em um número de dança. Começava aí uma incandescente rivalidade...
 
- Que história, Sr. Porter! Acho que já tinha ouvido algo a respeito no "Rádio Memória", programa dos meus amigos Jonas Vieira e Sergio Fortes...
 
- Jonas Vieira? Sergio Fortes? Nunca ouvi falar...
 
- É verdade, Sr. Porter. O senhor não os conhece. Mas posso lhe assegurar que também eles são seus fãs ardorosos. Suas canções estão sempre presentes no programa que apresentam nas manhãs de domingo, numa estação de rádio de minha cidade.
 
- Folgo em saber...
 
-Esteja certo disso! Mas, satisfaça minha curiosidade: o Paulo Fortes é uma amizade recente? Vocês brilharam em campos musicais diferentes...
 
- Mais ou menos, Biscoito. Mais ou menos. Sempre lembrando que também sou um grande apreciador da música clássica. Minha mãe, Kate Porter, propiciou-me uma formação musical sofisticada. Queria que eu, em tenra idade, fosse reconhecido como gênio da música. Uma espécie de Mozart norte-americano, entende? 
Ela me fez aprender violino com seis anos de idade. Piano, com oito. Com dez, alardeou que eu havia composto uma opereta. Não disse para ninguém, mas é óbvio que esse trabalho foi quase todo por ela realizado. 
A danada chegou a alterar a data da minha certidão de nascimento, de 1891 para 1893. Tudo para fazer valer minha suposta "genialidade precoce". Mas o certo é que eu só comecei a me destacar, musicalmente, quando cursei a Universidade de Yale. Minhas primeiras músicas de sucesso tinham a ver com o incentivo ao nosso time de futebol americano. Mas falávamos do Paulo Fortes, não é mesmo? Realmente nos aproximamos por conta da nossa paixão pela música clássica. Somos amantes da ópera, com uma queda especial pela obra de Giacomo Puccini, que ambos consideramos um melodista insuperável. E, sobretudo, um gênio do teatro, em quem, de certa forma, busquei inspiração anos mais tarde.
 
- Sua música "Bring me back my Butterfly", com inserções de acordes da "Madame Butterfly", deixa isso bem claro... O Sergio Fortes não pára de programar essa canção lindíssima, na voz de Thomas Hampson, um grande barítono norte-americano.
 
-Também não conheço esse Thomas Hampson. Muito menos, como já disse, esse tal de Sergio Fortes. O rei dos barítonos americanos do meu tempo era o Lawrence Tibbett. Maravilhoso! Mas bebia demais e sua carreira foi abreviada por isso. O Paulo Fortes não conhecia essa música e ficou muito empolgado. Disse ele que "Madame Butterfly" é a ópera favorita do público LGBT. Não sei bem o que é isso, mas acho que ele estava fazendo alguma referência às minhas inclinações sexuais, que são conhecidas...
 
-É, Sr. Porter, entendo que sim. Mas, mudando um pouco de assunto, ocorre-me informá-lo que em minha cidade, o Rio de Janeiro, estão encenando com muito sucesso "Kiss me Kate", um marco na sua trajetória de imensos êxitos...
 
-Que bom! Fico feliz com isso. Aliás, Biscoito, chame-me Cole. Realmente "Kiss me Kate" foi importantíssimo na minha carreira. Na década de 1930 eu fazia muito sucesso na Broadway. Foi quando apresentei três musicais bastante apreciados: "Anything Goes”, "Du Barrie was a Lady" e "Panama Hatie". Aí aconteceu um imprevisto terrível. Um acidente num passeio a cavalo causou-me inúmeras fraturas nas pernas. Uma delas foi esmagada com o peso do cavalo. Muito vaidoso, recusei-me terminantemente a aceitar a amputação que os médicos recomendavam. Com isso, vi-me na contingência de conviver durante anos com dores tremendas. Coincidência ou não, o sucesso dos anos 30 desapareceu na década seguinte. Isso perdurou até 1948. Foi quando apresentei "Kiss me Kate", musical baseado num livro de Samuel e Bella Spewak. Jamais comentei, mas fique você sabendo, Biscoito: aquela foi a minha resposta ao sucesso extraordinário de "Oklahoma”, da grande dupla Rodgers e Hammerstein II. Não gosto de me vangloriar, mas penso que o amigo sabe que "Kiss me Kate" ganhou todos os prêmios imagináveis! A produção alcançou mais de mil encenações na Broadway. E chegou às telas do cinema em 1953, numa produção da Metro Goldwin Mayer que também fez muito sucesso. No elenco estavam Howard Keel, Kathryn Grayson, Ann Miller e Tommy Rall. "So in love" é minha música favorita desta trilha sonora que, modéstia à parte, concebi em momentos de grande inspiração.
 
-Concordo plenamente, Cole. Também sou apaixonado por "So in love". Tenho um CD em que essa música extraordinária é cantada por Roberta Peters e Robert Merrill. Está gasto de tanto eu ouvir...
 
- CD, Biscoito? O que é CD?
 

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

3009 - L choro pluviométrico


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5258L                                 Data:  26 de janeiro de 2016

 

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CRIME E CASTIGO


Não se preocupem com o título, não tem nada a ver com a obra de Dostoievski. Está mais para “O Processo”, de Kafka – eu e o personagem do escritor tcheco tínhamos em comum desconhecer os motivos de nossas condenações.

Isso explicado, seguimos com os fatos evidentes e sem os retoques da ficção.

O crime é de minha autoria, como de minha autoria é esta crônica. Eu era inocente, como inocente era Josef K.

Eu tinha só oito anos de vida, em plena infância, ainda fora da idade da razão.

O castigo foi ter sido levado para um pobre “colégio interno”, cuja clientela era de crianças “sem eira, nem beira”, quiçá órfãs.

Pois eu tinha pais, irmão e irmãs, vivia à beira deles e eira, eu não conhecia.

Foram quatro anos de reclusão, com vários indultos.

A cada saída, uma alegria que perdia sempre para a tristeza do retorno. Ah, como doía!

O inconformismo e a indignação diante de tamanha injustiça, só me faziam chorar... E era tanto choro que nada nesse mundo represava as torrentes que vazavam de meus olhos.

Chorava muito, dormia chorando e acordava chorando.

Chorava, ia para o desjejum chorando e, em vez de brincar, chorava...

Na hora do almoço, comia muito pouco, mas chorava bastante – gotejava em volta do prato, na borda e mesmo dentro dele.

A maioria das outras crianças e adultos com quem convivia nem ligava. Uns riam, outros só me olhavam.

A escola toda se sentia bem, só eu não suportava e não entendia porque saíra de casa para ser levado àquela prisão. E então, chorava...

Um belo dia - belo é força de expressão - um inspetor austero, de nome Izauro, depois de me observar bem, achou que era hora de acabar com aquela choradeira e interromper a tromba d’água.

Sabia que eu chorava há três meses e concluiu que, se eu parasse de beber água, a choradeira pararia, pois para ele lágrima era feita de água. Este tinha um QI de ameba!

Mas o tempo é apaziguador e enxugou meus dias chorados.

Fui encarregado de cuidar da biblioteca. Gostei da tarefa.

Varria, passava pano molhado no chão e, com um espanador, tirava poeira dos livros.

Ninguém ia lá fazer sequer um pedido de algum exemplar.

Em minha reclusão, que durou quatro anos, li todo o acervo da biblioteca.

Calma! Não me vejam pretensioso e nem um pseudo José Mindlin!

O total de livros não passava de três dúzias, todos de temas infantis e os de grande valia eram os treze volumes de Monteiro Lobato.

Minha vida escolar acabou ali, um parco ensino primário.

A vida acadêmica, que não tive, tem tudo a ver com o que não aprendi naquele colégio.  E tudo o que sei, e mais do que sei, é o que penso que sei.

E também foi lá que aprendi.

Estou refeito. Pena cumprida. Família bem construída.

Monteiro Lobato me apresentou a Machado de Assis e, toda vez que leio o “Caso Pluvioso”, de Carlos Drummond de Andrade, me emociono e misturo minhas lágrimas com os belos versos que o poeta fez chover.

 

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

3008 - SX o pior ainda vem por aí


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5257SX                                 Data:  18 de janeiro de 2016

 

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PAPO DE ÓPERA

 

- Biscoito!

 

- Paulo Fortes!

 

- Não esperava encontrar o amigo tão cedo... Através do “Biscoito Molhado”, sabia da sua vida metódica, dos cuidados com a saúde... Daí o inesperado... Uma legião de amigos e admiradores não se conforma...

 

- É a vida, Paulo... Mas, finalmente, encontro o grande barítono, que sempre admirei muitíssimo...

 

- Obrigado, Biscoito! A admiração é recíproca! Sou um leitor assíduo do “Biscoito Molhado”. Gosto de tudo, especialmente seus escritos sobre o mundo da ópera. Sempre recomendo sua leitura ao Mario Henrique Simonsen. Ele também gosta muito das tuas crônicas. Vamos conversar muito sobre o mundo da ópera! Sinto falta desses papos...

 

- Mas como assim, Paulo? Não falta gente com quem conversar! O próprio Simonsen...

 

- Não é bem assim, Biscoito. Adoro o Mario, o conhecimento dele sobre o mundo da ópera é avassalador. Mas ele anda sem tempo. É procurado por dezenas de pessoas que querem conhecer suas opiniões e prescrições para a crise infernal em que a “Presidenta” enfiou nosso país. Ele não está muito animado...

 

- É, Paulo, a situação está realmente complicada. Acho que o Professor Simonsen tem razão para estar preocupado. Devo imaginar que, por conta dessa agenda atribulada, vocês não devem encontrar tempo para aquelas cantorias que costumavam promover nos restaurantes que frequentavam. Ou até mesmo no gabinete do Professor, na Fundação Getúlio Vargas. O que levava à loucura a secretária do nosso grande economista...

 

- É isso mesmo... Lembro-me de uma ocasião em que, como de costume, o Brasil estava metido em uma tremenda enrascada econômica. O governo editara um imenso pacote de medidas e todos os jornalistas queriam ouvir a avaliação do Mario Henrique sobre as providências tomadas. Por determinação de sua secretária, todos deveriam aguardar na sala de espera. Segundo ela, o Professor estava super ocupado. O problema é que essa espera já durava algumas horas e todos estavam preocupados com o “fechamento” dos jornais. Para piorar, podiam ouvir a cantoria que estava acontecendo na sala do Professor. Pela enésima vez, ensaiávamos o dueto de “Falstaff“ com ”Ford", página singular de Giuseppe Verdi que envolve dois barítonos. Nunca vou esquecer a expressão de ódio dos jornalistas quando finalmente demos nosso ensaio por encerrado e saímos da sala do Mario, felizes da vida...

 

- E esse dueto, Paulo, não tem se repetido por aqui?

 

- É como eu disse, Biscoito. Por um lado, o Simonsen está sem tempo. Também não aguento mais cantar todo dia a mesma coisa. E tem mais. Que ninguém nos ouça, mas a voz do Mario está completamente quebrada. Ele continua a fumar desbragadamente!

 

- Que pena, Paulo... Mas não existem alternativas para se perpetuar esse papo operístico? Sei que você fez amizade com o Pavarotti...

 

- É verdade. Vou te apresentar a ele. Mas devo te prevenir: não se anime muito! Acredite se quiser, Pavarotti revela um monumental desconhecimento sobre o mundo da ópera. Ele não tem noção do que aconteceu na arte lírica nos anos 40, 50 e 60. Isso, de certa forma, não me surpreende. Estamos falando de um sujeito que morou vinte anos em Nova Iorque e não aprendeu uma palavra de inglês...Um grandíssimo tenor. Mas um papo muito limitado. Mas, e você, Biscoito? Como explica sua paixão pela lírica? O Sergio, meu filho, ficou impressionadíssimo quando te conheceu...

 

- Bondade dele... O que posso dizer é que a minha chegada ao mundo da ópera se deveu ao meu pai. Ele trabalhou nos principais jornais, era um revisor muito competente. Tinha profundo conhecimento sobre os mais diversos assuntos. Foi quem me inoculou o vírus da música clássica. Ouvíamos as transmissões da Rádio MEC, diretamente do Teatro Municipal. O Sergio quase caiu para trás quando me ouviu falar sobre as grandes personalidades da época. Lamentavelmente, isso faz parte de um passado remoto, concorda, Paulo?

 

- Você tem razão, Biscoito. Essas transmissões eram maravilhosas! Para registrá-las, a MEC fazia uso de um gigantesco gravador AMPEX. O técnico da emissora era o Joacir, um bom amigo, casado com a Clara Marisi, soprano importante daquela época. Essas gravações permaneciam guardadas nos arquivos da Rádio MEC. Um belo dia, por lá apareceu um diretor que, alegando falta de espaço, jogou tudo no lixo! Durante anos o grande tenor Mario Del Monaco me cobrou uma cópia do fantástico "Guarany" que cantamos em 1951. Nunca tive coragem de lhe dizer que ela não mais existia...

 

- Que barbaridade, Paulo! Uma amostra do apequenamento que prevalece em vários segmentos da arte em nosso país. No Brasil ou no mundo todo? Confesso que tenho dificuldades para avaliar a dimensão desse fenômeno.

 

- Comigo acontece a mesma coisa, Biscoito. Mas acho que, nesse campo, estamos na vanguarda do atraso. Saltam aos olhos os exemplos: o que é, hoje, a programação das nossas rádios? Alguém se lembra de que a Rádio Nacional possuía várias orquestras? Que tocavam os arranjos de Radames Gnatalli, Lyrio Panicalli, Leo Perachi... E os cantores ? Que timaço! Orlando Silva, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Silvio Caldas... Além disso, programas geniais produzidos pelo meu super amigo Max Nunes, pelo Haroldo Barbosa... Isso para não falar na deliciosa PRK - 30.

 

- Terríveis comparações, Paulo. O teatro de prosa também decaiu muito. Onde estão as grandes companhias, o Teatro Brasileiro de Comédia, Teatro dos Sete, as companhias de Procópio Ferreira, Dulcina, Eva Todor? Dá para pensar, nos dias de hoje, em encenações de terça-feira a domingo? Com algumas matinés intercaladas?

 

- É isso mesmo Biscoito. Sobre a ópera, tenho até problemas para falar. Eu cantava sessenta récitas de ópera no Teatro Municipal, nos anos 50 e 60. O que acontece ali hoje em dia ? É uma tristeza...

 

- Não sobrou nem para o futebol, Paulo! Que milagre foi esse que reduziu a capacidade de espectadores do Maracanâ, de 200 mil para 70 mil torcedores? Não quero nem falar nos 7 x 1 da Alemanha. Isso não passa pela minha garganta...

 

- Biscoito, você quer um símbolo maior de nossa derrocada futebolística do que a decadência do meu América?

 

- Acho que você tem razão, Paulo. Pelo menos o meu Fogão está de volta à Série A do Campeonato Brasileiro.

 

- De futebol, Biscoito, vamos falar em nosso próximo papo.

 

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

3007 - D que rei sou eu?


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5256D                                 Data:  12 de janeiro de 2016

 

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O REI DOS VEXAMES

 

Melhor ser cabeça de baleia do que rabo de sardinha – o dito popular é meio diferente – mas é assim que pensam os reis. A mim, o destino vem mantendo sobre a minha cabeça uma coroa permanente, que, embora invisível, ora é reluzente, ora é bem espinhosa.

É a história de outro reinado que, somado ao das mulheres, torna o fardo do cidadão comum, plebeu de pai e mãe, mais leve do que esta média de reinados. Passa na mesma viagem, no mesmo navio e com a mesma tripulação do rei das mulheres. O que terá dado errado?

Na verdade, nada. Nunca fui um aluno gabaritado, mas naquele curso da EFORM – Escola de Formação de Oficiais da Reserva da Marinha, meus resultados nas provas superaram meus baixos recordes anteriores e fiquei colocado em primeiro lugar. Dirão alguns que todos estavam em férias e só eu levei a sério, possa ser, mas o fato é que ninguém chegou muito perto.

Mas a vida militar não é feita só de provas teóricas, há a disciplina, o cabelo cortado, o cinto brilhando e o sapato limpo, que, na Marinha, é branco e limpo mesmo. Aí, o caldo entornou. Dotada de anotações em todos os quesitos, minha caderneta espelhou uma nota de oficialato nada invejável e fui para o terceiro lugar.

Muito a contragosto, fui verificar, já a bordo do nosso “Minas Gerais”, quais eram as funções reservadas aos primeiros lugares. O primeiro fazia a parada diária – escapei bem dessa – e o terceiro, eu, distribuía a correspondência e escalava os quartos de serviço. Como todo mundo em alguma hora precisava trocar o horário de serviço, a minha banca era procurada por todos e a corte logo se estabeleceu. Um reizinho reinava a bordo.

Com estas atribuições especiais, nenhum dos quatro primeiros lugares dava serviço e eu passava as minhas intermináveis horas de folga na navegação do navio, que se tornara um hobby para mim. Seis da manhã, ponte do navio, seis da tarde, ponte do navio e não raro eu preparava as coordenadas da posição para meu bom amigo Continentino, o responsável pelo serviço.

E isso ia muito bem, o navio no curso. Diariamente, o comandante do navio, Rafael de Azevedo Branco, ia à ponte e, já acostumado com a minha presença, dava um bom dia, sisudo, mas satisfeito, se informava de tudo e seguia para o seu café da manhã.

E assim se passou a viagem, fomos a Porto Rico e a Curaçao e, lá pelo fim da viagem, soubemos que o comandante do navio iria almoçar com os guardas-marinha. Nessa hora, a Marinha é a tradição em pessoa, quem senta com o comandante são os mais antigos e os mais antigos são os primeiros colocados.

Chega a hora do almoço, estou colocado na mesa, na terceira posição, chega o Comandante Branco. Mais alto do que nós, ele passou a vista por todos – aquilo deveria ser para ele uma tarefa enfadonha, porém protocolar – e passou com aquele jeitão satisfeito e sisudo que eu bem conhecia, lá da ponte de comando do navio.

Ao chegar na mesa, na minha mesa, ele me viu na hora, imediatamente, instantaneamente e fulminou, agora, mais sisudo: “Este, não! Este eu vejo todo dia!”

Ao primeiro brado “Este, não!” surgiram do nada quatro fuzileiros que me deportaram para a mesa mais longínqua do salão e com a mesma rapidez, colocaram um desconhecido no meu lugar. Isto se passou sem que alguém ouvisse, ou ligasse, para a segunda frase do Branco, que continha a explicação, aliás, bem razoável.

Foi um vexame real e nem me preocupei em dar maiores explicações aos meus súditos, pois ninguém iria querer saber dos detalhes sórdidos, a lenda já tinha ficado melhor do que o fato e, se eu desse mais corda, o reinado se tornaria perpétuo.

E assim, me achei normal, me comportei como tal e fui o rei dos vexames apenas até o desembarque.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

3006 - SX A ópera da terra de ninguém


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5255SX                                 Data:  11 de janeiro de 2016

 

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“NESSUN DORMA”. ALGO MAIS.

 

 

“Nessun Dorma”, a crônica emocionada que o Daniel escreveu para homenagear seu tio Carlão, mexeu com todo mundo. E me motivou a “cometer” alguns comentários adicionais sobre essa belíssima ária da ópera "Turandot", de Giacomo Puccini.

 

“Nessun Dorma” foi, desde sempre, um desafio a ser enfrentado pelos grandes tenores da cena lírica. Seu libreto, como frequentemente acontece no mundo da ópera, é um tanto ou quanto amalucado.

 

O desconhecido Príncipe Calaf chega a um reino também desconhecido e se apaixona pela Princesa Turandot. Ela não quer assunto com ele. Mas, quem sabe, pode até aceitar uma conversa, desde que o tal príncipe responda corretamente três enigmas a serem por ela propostos. Já fizera isso com dezenas de pretendentes, que erraram as respostas, sendo, por conta disso, devidamente decapitados. 

 

O problema é que Calaf acerta os três enigmas! Turandot fica desesperada. Em meio a um ataque de pelanca da insensível princesa, Calaf propõe uma alternativa para ela tentar virar o jogo: ela sairá vitoriosa e ele abrirá mão do colóquio, se Turandot acertar não três, mas apenas um enigma. Trata-se de descobrir qual é o nome do príncipe (até aquele momento não mencionado na presença da princesa).

 

Turandot mobiliza sua corte para descobrir o nome do viajante. Todos ficam proibidos de dormir, até que se mate a charada. “Nessun Dorma” (Ninguém Durma!) é a ária cantada por Calaf no segundo ato da "Turandot”, confiante em sua vitória final. Ao Google para saber como a história termina! (*)

 

 

A decisão de produzir "Turandot", aquela que viria a ser sua última ópera, foi tomada por Giacomo Puccini em março de 1920, depois de uma reunião que manteve com Giuseppe Adami e Renato Simoni, os libretistas da ópera. Somente em janeiro de 1921 começaria efetivamente a compor. Em março de 1924, a ópera estava quase completa, faltando apenas o dueto final, envolvendo Calaf e Turandot. Nos meses seguintes Puccini discutiu exaustivamente com seus libretistas os detalhes do final da encenação. No dia 8 de outubro, finalmente aprovou uma quarta versão de Giuseppe Adami para os versos do dueto.

 

Dois dias depois, Puccini, fumante compulsivo, foi diagnosticado com câncer de garganta. Embarca para Bruxelas, em busca de tratamento. Foi operado no dia 24 de novembro, morrendo cinco dias depois, vitimado por complicações decorrentes da cirurgia.

 

Puccini deixou 36 folhas com esboços e instruções para o final da ópera. Queria que Ricardo Zandonai concluísse o trabalho. Mas Tonio, filho de Puccini, criou objeções e escolheu Franco Alfano, discípulo do mestre, para essa tarefa. A primeira versão do trabalho de Alfano não foi aprovada pelo editor Ricordi e pelo Maestro Toscanini. Prevaleceu uma segunda versão, mais fiel às anotações de Puccini.

 

No dia 25 de abril de 1926 aconteceu a estreia da ópera no Scala de Milão. No momento em que iria começar o dueto final, o maestro Toscanini, numa atitude surpreendente, depositou a batuta e parou a orquestra. Voltou-se para a plateia para dizer: “Aqui a ópera acaba. Porque nesse ponto o Maestro morreu”.

 

O Biscoito teria feito o mesmo.

 

(*) Coisa nenhuma! O Biscoito jamais perpetraria uma maldade dessas!