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sexta-feira, 30 de março de 2012

Leitor empolgado

A nossa comunicação desta sexta-feira sobre os 2300 do Biscoito mereceu o seguinte comentário do leitor José Carlos Portugal, ex-aluno CMRJ e muito conhecido pela alcunha "Portugal".

Didi, (* - Didi, sou eu, DIstribuidor DIeckmann)
Gostaria de me associar à alegria desse feito e dizer so desejo coisas boas para esse abnegável grupo que faz do Biscoito essa respeitável, independente e agradável publicação, um marco no jornalismo brasileiro, cuica bolivariano.
Saudações Molhadas e Afetuosas.
JCP

quarta-feira, 28 de março de 2012

2220 - cavalgando por aí

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3920 Data: 27 de março de 2012

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SABADOIDO DO RETRATO DE RECORDAÇÕES

PARTE III

Porque se confundiu nas pronúncias de Malarmé e Baudelaire como tradutores de “O Corvo”, Luca enveredou por esse assunto.

-Eu dizia “voyeur”, como se escreve, mas um dia ouvi o Carlinhos dizendo “voaieur”. Depois, ouvi o Chico Buarque, grande conhecedor da língua francesa, falando também “voiaeur”.

-Luca, nós estudávamos francês no curso ginasial e aprendíamos isso. - intervim.

-... No ginasial e no científico. - acrescentou a Gina com veemência.

-Sim, você até foi aluna do Pierre Vincent do Visconde de Cairu. - disse, lembrando-me dos casos que ela me contou do afetado professor, que recebeu esse apelido.

-Sim, o Pierre Vincent. - ratificou.

-Não é pedantismo, mas eu me recuso a aportuguesar os nomes das ruas vizinhas à minha casa. Falo “Renoar”, “Gogan”, “Manê”, “Rodan”.

-Ainda existem aqueles que perguntam pela rua “Corote” com o “ó” aberto?- quis saber a minha cunhada com a expressão mordaz.

-Eu corrijo: “O senhor quer dizer Rua Corot”?

-De um tempo pra cá, o inglês tomou o lugar da língua francesa. - manifestou-se meu irmão.

-O francês era considerado a língua culta, e o inglês é a língua comercial.

Depois de eu falar, a Gina narrou mais uma vez o caso do floreado Jorginho, morador da casa onde hoje é o motel Cartago, que foi abordado por um motorista que queria saber a localização da rua “Gaugin” (falou como se escreve). Depois de indicar a rua “Gogan”, com mais precisão do que um GPS, Jorginho arrematou: “O seu carro é uma beleza, mas o seu francês é uma merda.”

Em seguida, Gina se ergueu da cadeira do ausente Vagner e rumou para dentro de casa. Luca, nesse ínterim, pegou um envelope.

-A Rosa mandou para você.

Era um livro. Espiei o título: “Como Proust pode mudar sua vida.”

-Estão, agora, usando os grandes autores da literatura para escrever livros de ajuda- comentei com meus botões, enquanto me vinha à mente o livro sobre Jane Austen, com o mesmo propósito, que a Rosa me presenteara no meu aniversário.

Entre as páginas, colhi uma folha de papel amarela onde a presenteadora corrigia o autor do livro que, na página 179, trocou o Carlos V do quadro de Ticiano por Carlos I. Em seguida, a erudita Rosa me enviou uma gravura dessa obra-prima com os dizeres:

-”É o Carlos V do Ticiano de que lhe falei, o escritor fala em Carlos I. Haja Carlos! Quanto ao V, sempre ouvi dizer que era um grande estadista. Li uma biografia em que um autor cubano, pré-Fidel, garantia que era um imbecil. Numa (biografia) sobre Lucrécia Bórgia, garantiam que era uma santa.”

Procurei o nome do escritor do livro de autoajuda e li: Alain de Botton.

O assunto sobre a pronúncia de palavras estrangeiras retornou.

-O Zé Espanhol veio para o Brasil menino e, ainda hoje, fala com sotaque da Espanha. - assinalou o Cláudio.

-Ele chegou ao Brasil pequenininho e continua pequenininho. - pilheriou meu irmão.

-Quando o Zé Espanhol fica nervoso, então, ela fala um idioma que ninguém entende, parecido com o espanhol. - disse o Luca.

-O Fernando, Cláudio, o nosso vizinho de tempo de garoto da Rua Cachambi, era um espanhol que falava melhor do que muitos cariocas.

-Carlinhos, o Fernando era inteligente.

Gina, que retornara à sessão do Sabadoido, tirou das cinzas do esquecimento os portugueses e espanhóis, que residiram no Cachambi, com seus respectivos sotaques.

-O Fernando se entendia com os pais na língua da terra deles, Santander e conversava conosco sem um acento que fosse estranho à nossa maneira de se expressar.- disse, em conversa paralela com meu irmão.

-Fernando era mais de pensar do que de colocar a mão na massa.

Às palavras do meu irmão, veio-me à mente que o Zé Espanhol trabalhara com um mouro em padaria até se tornar proprietário de uma, perto do Adegão Português, onde eu almoçara , no início deste ano, com o Elio Fischberg e o Luca.

-Ele quer a Tchina (Gina) e a Tchura (Jura) na festa de aniversário dele. - brincou também o Luca com o sotaque do nosso padeiro de São Cristóvão.

E pensar que a Rosa Grieco me chama, às vezes, de mitron (aprendiz de padeiro, em francês)?! ... Alfinetamo-nos um ao outro como praticantes de vodu. Tudo nos mais alto nível, como nas discussões entre os senadores Roberto Campos e Fernando Henrique Cardoso.

Divagava eu, quando o Cláudio passou por mim para encher os copos vazios, enquanto a Gina, mais uma vez, voltava para dentro de casa.

O Otto Maria Carpeaux veio da Áustria para o Brasil, fugindo do nazismo, sem falar nada da nossa língua e, em três anos, já fazia avaliações sobre a nossa literatura.

-Carlinhos, o que isso tem a ver com o que falávamos?- criticou meu irmão.

-Não estávamos falando na adaptação dos estrangeiros à nossa língua?- rebati.

-Mas Otto Maria Carpeaux?!... - insistiu que eu exagerava.

-Sim. - mostrou o Luca concordância comigo.

-Você conheceu o Otto Maria Carpeaux? - questionou o Cláudio.

-Conheci. - assegurou o Luca.

Veio-me à mente o enciclopédico escritor que redigira “Uma Nova História da Música”, que eu li, anos atrás, e reli, recentemente, porque a Rosa me enviou o livro em outra edição. Incrustaram-se no meu cérebro as suas palavras sobre Wagner, um compositor tão diferenciado no universo da música que ele, Carpeaux, para desancar, teve de recorrer ao caráter: “um canalha”. Richard Strauss, que se mostrou um músico incansável, haja vista a sua obra prolífica, foi chamado por ele de “oportunista”. Por que oportunista? Mas não era disso que eu queria me lembrar. Quando consegui, finalmente, arrancar da minha memória a briga de socos entre ele e o Jorge Amado, o Luca atendeu a um chamado do seu celular.

Cláudio se reportou à morte do locutor Ernani Pires Ferreira e à baixaria que grassa no Jockey Clube Brasileiro e que provocou a sua demissão, acelerando o desfecho triste.

-Recorda-se, Cláudio, quando o Baronius perdeu o Grande Prêmio Brasil de 1980, porque o jóquei do cavalo de São Paulo chicoteou os seus olhos?... Mesmo com essa irregularidade, não houve desclassificação e o Baronius, que pertencia ao Lineu, ou Francisco, de Paula Machado, ficou atrás do paulista.

-Eles mostraram nobreza. - declarou.

-Pois é, a nobreza da família Paula Machado foi posta para correr do Jockey Clube Brasileiro.

Nesse instante, o Luca desligou o celular e me pediu pressa, pois já chegara a hora de ir embora.

terça-feira, 27 de março de 2012

2119 - 0 biscoito aposentado

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3919 Data: 25 de março de 2012

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O SABADOIDO DO RETRATO DE RECORDAÇÕES

PARTE II

Meu irmão deu início a considerações sobre a política brasileira, mas escapou do assunto quando se lembrou que, depois de uma discussão dois sabadoidos atrás, que isso se tratava de um campo minado. Luca, na ocasião, vociferou contra José Serra, que fora presidente da UNE no governo João Goulart e por pouco não foi morto pela ditadura de Augusto Pinochet. Eu, para não ficar atrás, urrei contra Fernando Henrique Cardoso, que declarara, por ocasião da campanha eleitoral de 1998, que eram vagabundos todos aqueles que se aposentavam com menos de 50 anos de idade. “Ora, Fernando Henrique Cardoso, vagabundos são aqueles que se aposentam com menos de 80 anos.” Cláudio, por sua vez, investiu ferozmente contra o Brizola porque impediu que chegassem às bancas de jornais os exemplares da revista Playboy com os fotos da sua filha nua. Ele queria saber qual a nudez mais apavorante: a da Neuzinha ou da Hortênsia.

Como não prosperou o tema sobre política, voltei a pedir o retrato da minha turma de Admissão da Escola 9-10 Manoel Bomfim. Luca me devolveu, gentilmente, aquele instantâneo de 9 de setembro de 1959 e eu o examinei detidamente.

Éramos uns quarenta alunos, todos magros, alguns magricelas, como minha irmã. Nós não nos entupíamos de Coca-Cola ou outro refrigerante. Não havia Mc Donald's espalhados pelo Brasil e outras lojas de guloseimas que contribuem, hoje, com uns 40% de gordinhos numa turma de criança. As televisões eram poucas, em 1959, os televizinhos também, assim, nós brincávamos de correr até pelas ruas, algumas delas sem trânsito. Atualmente, as crianças, e também os adultos, estão muito ocupadas diante de uma televisão ou de um computador.

Na Inglaterra, Tony Blair, quando primeiro-ministro, em 2005, recorreu ao chef de cuisine Jamie Oliver, que ficou com a incumbência de tornar mais saudável a refeição das crianças que frequentavam as escolas públicas. Alguma coisa tem de ser feita para que não se confirme parte da frase do doutor Dráuzio Varella: “O maior assassino do século XX foi o cigarro, e do século XXI será a obesidade.”

A voz sonora do Luca convergiu, nesse instante, todas as atenções do Sabadoido. Lia ele uma crônica do Carlos Heitor Cony, que a Flor do 86 recortou da Folha de São Paulo.

“Se me perguntarem qual o livro mais importante que li, eu seria obrigado a citar uns 20 ou 30, sem incluir na lista a Bíblia e o catálogo de telefones. O mesmo aconteceria se me pedissem para lembrar o melhor jogador de futebol, o melhor samba, o melhor filme e o melhor sanduíche de carne assada da cidade.”

Luca baixou o recorte de jornal até o colo e quis saber se todos estavam de acordo até ali.

Apesar de o próprio Luca puxar a metralhadora para defender a posição do Chico Buarque de Holanda como o maior compositor popular brasileiro, o Cláudio, a bazuca contra quem duvidar que o maior de todos é o Tom Jobim, todos concordaram com as palavras do cronista. Luca prosseguiu, então, com a leitura.

“Agora, se a pergunta fosse feita sobre o poema que mais me impressionou, eu responderia sem qualquer hesitação: “O Corvo”, de Edgar Allan Poe.”

-Carlos Heitor Cony foi descobrir preponderância logo num assunto tão rico e diversificado: os poemas. - pensei sem me manifestar.

-Trata-se de um poema poderoso. - frisou o Luca.

-Never more. - disse a Gina, extirpando o terror dessas palavras de Edgar Allan Poe com sua expressão zombeteira.

-Há um desenho de “Os Simpsons” - não me lembro se sobre o Dia das Bruxas – em que o Homer Simpson está no papel do amante desesperado desse poema e recita: ...”Tira-me do peito essas fatais/ garras que abrindo vão a minha dor já crua/ e o corvo disse: “nunca mais” .” O Daniel viu esse desenho e recitava de cor esse poema de “Os Simpsons” de cor, quando guri. Aposto que ainda recita, hoje.

Após a minha tagarelice, a Gina informou que ele saiu, mas logo estaria de volta.

Nesse instante, ouviu-se o ruído do portão da frente da casa. Em um minuto, o meu sobrinho estava diante de nós.

-Daniel, recorda-se daquele poema “O Corvo”, que o Homer Simpson recitava num castelo?

-Eu me recordo do desenho. O corvo tinha a cara do Bart e perturbava o pai, o Homer Simpson.

-E o poema, Daniel? Ela fala da Leonor, que morreu, e o corvo diz “never more”.

-Ah, sim!... Já esqueci. - brincou com a minha expectativa.

-Carlinhos, você quer que o Daniel se lembre e uma coisa tão antiga?... - saiu a Gina em defesa do filho.

-”O Corvo” é um poema oral, feito para ser recitativo, Poe o recitava em saraus como se tratasse de um “lied” de Schubert, uma fuga de Bach. Por isso mesmo, o ritmo, a cadência, sobretudo as rimas internas dentro dos versos, representam uma dificuldade quase intransponível para a versão em outra língua, de um poema que, ao longo de mais de um século, foi e continua sendo dos mais traduzidos da literatura universal.”

-Machado de Assis traduziu “O Corvo”. - assinalei.

-Muitos traduziram. - disse o Luca brandindo o recorte feito de Rosa Grieco.

-Baudelaire, Malarmé...

Luca cessou a citação dos nomes dos tradutores para confessar a sua dificuldade com a pronúncia francesa.

Cláudio aproveitou a oportunidade para imitar cenas dos professores dos filmes “Anjo Azul” de Josef von Sternberg e “Amarcord”, de Fellini, que mostram a posição da língua para a pronúncia correta dos alunos, que falham fragorosamente para a alegria de todos.

-Falam lá fora de pronúncia de línguas estrangeiras. - disse ao meu sobrinho quando o encontrei na cozinha a caminho do banheiro para urinar.

-Carlão, sinto falta dos alemães dos Correios nesse meu trabalho na Casa da Moeda. Minha fluência no inglês se foi.

-Pois é, Daniel, na questão de moedas, brasileiros e alemães não estão se entendendo.

-Como assim?

-Os estrangeiros conseguem dinheiro com crédito baixo, então, eles investem no Brasil, onde as taxas de juros são elevadíssimas e, com a abundância de dinheiro estrangeiro aqui, o real fica supervalorizado, por isso a Dilma se queixou do tsunami monetário antes do encontro com a Angela Merkel. Mas o Brasil não é a vítima dessa história, pois não toma medidas para baixar as taxas de juros.

-É muita roubalheira, Carlão.

segunda-feira, 26 de março de 2012

2118 - lembranças penduradas

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3918 Data: 22 de março de 2012

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O SABADOIDO DO RETRATO DAS RECORDAÇÕES

Antes de o Sabadoido, propriamente, se iniciar, a conversa seguia animada.

-Você vai viajar de novo a serviço, Carlinhos?

-Em fevereiro, Gina, fui a Macaé; no final de março, irei a Angra dos Reis.

-Você sempre viaja com mais de um colega, não é?

-Sim. Certa vez, entramos três no escritório de uma empresa, por coincidência, de Angra dos Reis e a filha do dono perguntou porque tantos, se um fiscalizava o outro.

-Perguntou mesmo, Carlão? - interessou-se o Daniel.

-Um dos meus colegas explicou que são ordens de Brasília: um fiscal, em ação, nunca pode agir sem a companhia de outro.

-Mas três?!... - estranhou a Gina.

-De fato, é um exagero, três são necessários para se vistoriar um porto, um terminal, mas empresa, bastam dois fiscais. É desperdício de dinheiro público.

-Isso na esfera de vocês, imagine nas esferas mais altas do funcionalismo público. - interveio o Cláudio.

E prossegui:

-Muitos dos meus colegas são sovinas, querem lucrar o máximo com as diárias, procuram, assim, espremer o máximo os gastos nessas viagens.

Gina me interrompeu:

-Quando o Daniel viajou com um colega dos Correios para Búzios, onde verificariam o sistema de informática da agência de lá, cada um ficou no seu quarto.

-Não quero homem por perto. - bradou meu sobrinho.

Retomei a palavra:

-Quando falam em dividir quarto, eu aviso: não vejo novela e não gosto de Big Brother Brasil. Se alguém ainda insiste, eu lanço meu argumento fatal: o ar condicionado me faz mal.

-Dividir quarto só para economizar uma mixaria... - criticou a Gina.

-Na Pousada em que ficamos, em Cabo Frio, tem o canal Film & Arts, na TV a cabo, ou seja, eu vejo óperas quando estou lá. Com um companheiro de quarto, eu causaria um choque cultural.

Apesar da empolgação da oratória, fui para o cybercafé do Daniel. Um pique de luz que ocorrera dois dias antes, onde eu moro, queimou a fonte, ou a placa-mãe do meu computador e eu precisava adiantar um texto do Biscoito Molhado.

Sem reparar nas palavras que apareciam no monitor de vídeo, deduzi que a revisão trabalharia como nunca.

-Parece que o Elio adivinhava quando pediu as contas. - murmurei.

O silêncio, que indicava que não havia ninguém por perto me tranquilizava, pois eu me sentia como no tempo em que digitava clandestinamente este jornalzinho com a senha do Dieckmann, no Departamento de Marinha Mercante.

Com a metade da edição digitada, calculei que, rabiscando a outra metade num caderno, eu digitaria tudo, no trabalho, em menos de uma hora e, assim, parei de escrever e fui abrir a minha correspondência virtual. Deparei-me, então, pela enésima vez com simpatias que trazem riqueza para o nosso bolso. Diziam que, depois de duzentos anos, cinco sábados cairiam num só mês, ou seja, março de 2012. Bastava que eu enviasse essa mensagem, segundo o remetente, para vinte pessoas, que a fortuna me sorriria. Só rindo... a fortuna não, que esta é carrancuda, eu é que riria.

Dieckmann me enviou um vídeo em que o cineasta lambe, com a câmera, uma Ferrari vermelha. As curvas do carro são mostradas com a paixão que Roger Vadim não teve quando filmou Jane Fonda na Barbarella (na sua autobiografia, ele confessou que antes da primeira relação com ela, broxou três vezes).

Sérgio Fortes me mandou a corrida pelo poder na Rússia. Vladimir Putin, de calção e camisa regata, partiu na pista de atletismo e, com um revólver em punho, impedia que seus adversários o ultrapassassem. Hugo Chaves, em Cuba, sentiria inveja.

Do quarto do Daniel, eu percebia uma espécie de terremoto na casa da Gina cujo epicentro vinha do local da sessão do Sabadoido, desde que o Luca chegara.

-Que novidade ele trouxe?... - fiquei curioso.

Ao rumar para lá, depois de guardar meu pendrive com o início do próximo número do Biscoito Molhado armazenado, cruzei com a Gina, na entrada da cozinha.

-Vai lá, Carlinhos, que o Luca está com o “enigma da esfinge” para você.

Inocentemente, pensei nas desventuras de Édipo, que o decifrou na antiga Grécia dos grandes artistas e falei sobre isso.

-Vai lá. - insistiu.

O “enigma da esfinge” nada tinha a ver com Sófocles. Luca tampou, com a palma da mão esquerda, uns dizeres à margem de um retrato de uma turma de alunos e professora e propôs a adivinhação:

-Quantos vocês identificam?

Eram crianças na faixa dos onze e treze anos de idade. Olhei, vi, perscrutei, e nada.

-A Gina acertou três. - tentou me provocar.

-Eu sou mau fisionomista. Se a irmã da Gina estivesse aqui, acertaria ainda mais.

-Claudiomiro não conseguiu reconhecer ninguém.

-Temos boa memória, mas não para rostos.

-Não vai tentar?... concedeu-me mais tempo para eu torturar a minha memória, mas, pelos bons serviços que ela tem me prestado, recusei.

-Esta aqui – apontou – é a Suzete.

Fixei minha atenção na figura da minha irmã e me lembrei de uma tia-avó.

-Você está aqui. - mostrou-me.

Era eu mesmo ainda com onze anos de idade. Enquanto eu me olhava mais do que Narciso, mas por motivos diversos, Luca me mostrou a Candinha, sua cunhada e dona do retrato.

-Como o Expedito pertencia à minha sala, na Admissão do Manuel Bomfim e era o maior da turma, é este aqui. - acertei por esse método, não porque eu me recordava do rosto do vizinho da Rua Chaves Pinheiro que fez a vida em Rondônia quando se tornou adulto.

-Esse pequeno álbum é de setembro de 1959. - falou o Luca.

Embora eu não me identificasse pessoalmente, guardava muitas reminiscências dessa época. Gostava da minha professora, talvez porque, depois de alguns anos escolares meus, ela seguiu com a turma do primeiro ao último dia de aula. Destacava-se no meio de nós, com seus vinte e poucos anos de idade. Era filha da dona do Colégio Piratininga, na Rua Hermengarda, que, hoje, é o Colégio Santa Mônica.

Minha irmã, que perdera um ano porque cursou o Colégio Coração de Maria, em 1954, era a mais alta da turma juntamente com o Expedito. Este estudava no extinto Colégio João Ribeiro, no Méier, hoje, agência do Bradesco. Um dia, disse-me que estudaria na minha escola, pois se desentendera na antiga (foi reprovado, na verdade). Na Escola Manuel Bomfim, apresentou-se como o nosso líder, e arrumou uma briga com um menino da outra turma da Admissão (Sérgio, que viria ser concunhado da Gina). Certa vez, fomos submetidos de surpresa a uma prova de religião. Expedito, prontamente, levantou o braço para fugir daquela situação.

-Não sou católico.

-Qual a sua religião?

-Sou espírita.

-Vai fazer a prova. - determinou a professora.

Na festa junina da escola, naquele ano de 1959, outra professora exclamou “Meu Deus”, quando parte das arquibancadas improvisadas caíram, mas ninguém se machucou.

Cláudio passou a falar em política, com o Luca, dando por encerradas as minhas reminiscências, no Sabadoido.

sábado, 24 de março de 2012

2117 - Cavalgaduras simpáticas

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3917 Data: 21 de março de 2012

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NÃO SE MODULA ASSIM, NO TÁXI

Entrei no carro do “Meu Nobre”, que havia sintonizado o rádio táxi na central da cooperativa. Deduzi que não seria bem vindo um diálogo naquele momento para ele, pois poderia perder uma corrida posterior, por isso, mantive-me mudo. Não seria eu que iniciaria uma conversa.

Não pretendia dedicar a minha atenção às palavras que soavam daquele aparelho, mas, em dado momento, ouvi uma voz que trovejou:

-Zero cinquenta e três. - era um taxista que oferecia seu veículo para uma corrida.

-Zero cinquenta e três. - bisou.

Fez-se um silêncio total.

Quem é esse estressado?- pensei com meus botões.

Inesperadamente, entrou no lugar da voz feminina, que coordena a demanda e a oferta, na central da cooperativa, uma voz masculina.

-O que é isso?... Você não modula assim?

O silêncio voltou até ser quebrada por uma voz mansa:

-Zero cinquenta e três.

Fui obrigado a falar:

-Ele havia gritado.

-Gritou mesmo. - concordou o “Meu Nobre”.

Em seguida, ele discorreu sobre a necessidade de os taxistas se manterem calmos, apesar do trânsito irritante e da vida difícil que levamos na cidade grande.

-Um comandante da Marinha, no meu trabalho, dizia, sobre essas pessoas que levantam a voz intempestivamente, que atravessam problemas psicossociais. - lembrei.

Na rua Modigliani, despediu-se chamando-me, como sempre, de “Meu Nobre”.

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Descendo a primeira rampa da estação do metrô de Maria da Graça, vi um sujeito bem vestido, comparando-o com os demais, que distribuía folhetos aos transeuntes.

-Falta tanto tempo ainda para as eleições...

Não se tratava de cargo eletivo, constatei com o papel que me entregara, na mão, e sim de uma nova igreja evangélica cujo nome ligava Cristo a alguma coisa que se perdeu na minha memória.

Com o taxista do 017, também conhecido por nós como “Dedão do Arqueiro Inglês”, porque num entrevero de trânsito o ofenderam com o gesto desses temíveis arqueiros medievais, comentei o fato:

-Como a abertura de igrejas isenta os empresários da fé de impostos, há mil igrejas espalhadas por aí.

-O que foi?- quis saber.

-Um esperto distribui folhetos, lá na rampa do metrô, com o objetivo de colher fiéis para a igreja que vai inaugurar.

-Veja só!... - reagiu.

-Talvez tenha sido discípulo do Bispo Macedo.- aventei a hipótese.

-Certamente.

Depois de concordar, prosseguiu:

-Mas o Bispo Macedo não ensinou o pulo do gato a ele.

-Os feiticeiros só deixam, na verdade, aprendizes.

Consegui frear a minha língua, pois ia enveredar pelo poema “Aprendiz de Feiticeiro” de Goethe.

-Você conhece o pulo do gato?- interessou-se pelos meus conhecimentos.

-Conheci, quando morei numa vila da rua São Gabriel. Rex, o buldogue do Seu Dilmar, um vizinho muito querido, partiu com um apetite impressionante atrás de um gato, quando parecia que o bichano estava desgraçado, ele deu um pulo para trás e escapou.

-A diferença é que o Bispo Macedo não dá o pulo do gato para se salvar, mas para perder os outros.- disse o “Dedão do Arqueiro Inglês”, e parou no segundo poste da Modigliani.

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-Que calor! - reclamou o taxista, logo que sentei no banco da frente.

-Se o ar condicionado deste carro estivesse funcionando, não reclamaria. - resmunguei com meus botões.

Não rodou 100 metros e voltou a se queixar da alta temperatura.

-Deveria baixar os vidros do táxi, ao menos.

Eu pensava, mais nada dizia, pois era um taxista bissexto naquele ponto da rua Domingo de Magalhães, pelo menos no meu horário de passageiro desse meio de transporte.

Reportei-me, em pensamento, ao Flamenguista, que me contara que, trabalhando no carnaval, avisou a todos, antes de entrar no seu táxi, que o ar condicionado estava pifado e que ele só poderia consertá-lo na quinta-feira, pois as lojas não abririam nem na quarta-feira de cinzas.

-O senhor sabe quando acaba o verão?

A primeira resposta que me veio à mente foi a frase de um colega de trabalho, que disse que o verão só se encerra quando o termômetro cai para menos de 30º.

-Creio que termina no dia 21 de março. - respondi.

-Falta pouco.

-Mas o calor vai até abril. - acrescentei com uma ponta de sadismo.

-Mais um mês de quentura, não.- protestou.

-Recordo-me de dias abril que foram uma fornalha.- falei pausadamente.

-Peço aos céus uma frente fria.- bradou.

Saltei do táxi com uma frase do Mark Twain na cabeça: “Prefiro o paraíso pelo clima, o inferno pela companhia.”

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-Rapaz, enfim uma viagem descontraída no metrô.- falei, enquanto ajustava o cinto de segurança do meu banco, no táxi do Botafoguense.

-As pessoas saem do metrô mal-humoradas... - estranhou.

-Eu entro e saio de mau-humor, mas, dessa vez, foi diferente. Na estação Carioca...

-Você pega o metrô da volta lá?

-Sim. Naquele fluxo e refluxo de passageiros, na Carioca, entraram dois mulatos de bermudas, sandálias de dedo, apregoando: “um lugar para a tia sentar que ela está com criança...”

-E deram lugar?

-Quando o vagão se esvaziou, na estação da Central do Brasil, eu vi uma senhora e um pequerrucho acomodados no banco dos idosos, grávidas, pessoas com bebê.

-E os dois morenos?- quis saber.

-Eram morenos mesmo; eles estavam de pé junto à porta. Já sabiam até o nome da criança, que deveria ter dois anos de idade, no máximo: Daniel. Revelaram que era flamenguistas e perguntaram: “O Daniel também é?...” A mãe respondeu que o bebê era vascaíno.

-Estava criado o clima de guerra.- concluiu o Botafoguense.

-Nada. Os dois brincaram com a rivalidade entre as duas torcidas e disseram que o Daniel era gente boa, que nada tinha a ver com o Eurico Miranda.

-E os passageiros do metrô ouviam tudo?

-Os do nosso vagão ouviam, porque eles falavam alto; ouviam e riam.

-Normalmente, o pessoal está irritadiço, quer viajar em silêncio. - comentou o taxista.

-É verdade, e eu sou um dos maiores exemplos de quem porta uma carranca nessas horas, no entanto, os dois rapazes alegraram mesmo o ambiente.

-Não exageraram na bebida?

-Acredito que era alegria, mesmo. Quando descobriram o dia do aniversário do Daniel, puseram-se a cantar “Parabéns pra você”, com o acréscimo do “Derrama, senhor” e o “Daniel já foi abençoado...”

-Só em aniversário em casa de família católica se canta essas canções. - surpreendeu-se o Botafoguense.

-Despediram-se com um “Tchau, Daniel”, em Maria da Graça, e saíram do trem aos saltos, como potros, pela plataforma do metrô. - concluí, enquanto o táxi chegava à rua Modigliani.

quarta-feira, 21 de março de 2012

2116 - Radio Nacional


O Distribuidor está em viagem, por isso a formatação ficou alterada.

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3916 Data: 19 de março de 2012
GRITOS E SUSSURROS NO SABADOIDO
PARTE III
-Com a ditadura dos militares, o César de Alencar dedurou todo o mundo da Rádio Nacional.- sussurrou o Luca como se o clima de apreensão ainda persistisse.
-Dizem que a grande ambição da sua vida era se tornar diretor da Rádio nacional.- falei.
-Ele delatou o Dias Gomes.- frisou o Luca.
-Todos sabiam das ideias socialistas do Dias Gomes. O César de Alencar agiu como mau caráter quando alcaguetou artistas do elenco de novelas. Recordo-me que a minha mãe ouvia quase todas as novelas, e ela constatou, depois de 31 de março de 1964, que várias vozes sumiram. Foi um desencanto geral.- intervim.
-Vocês sabiam que, naquela época, a Rádio Nacional tinha uma penetração maior do que a TV Globo de hoje?- enfatizou o Luca.
-A TV Globo possui repetidoras por todo o Brasil que alteram uma grande parte da programação que sai do Rio de Janeiro, enquanto na Rádio Nacional não havia alteração alguma. O que se dizia aqui, no Rio, ressoava pelo país todo.
-Por isso há tantos times cariocas com torcedores espalhados pelo Brasil a fora.- pensei, enquanto o Cláudio falava.
Gina reapareceu, e o Luca, aproveitando, entregou-lhe um mimo da Rosa.
-Para mim?- surpreendeu-se.
-A Rosa fez questão, Gina.
Em seguida, ele se voltou para mim:
-A Rosa enviou este livro para você de presente.- repassou-me com umas folhas amarelas entre as páginas do mesmo.
-Antônio Vieira!- exclamei, embevecido.
-Imaginei que ela fosse me dar... - confessou.
Porém, o alentado volume dos Sermões estava comigo.
-Terei de fazer um grande esforço para não largar a biografia de Chopin, que ela também me presenteou, para não ler logo este livro.
-Leia os dois ao mesmo tempo.- propôs o Cláudio.
-Há certos livros que exigem a disciplina do leitor; não posso misturar Chopin com Antônio Vieira.
Enquanto eu me manifestava, colhia uma missiva, de dentro dos Sermões de Antônio Vieira, manuscrita pela doadora.
“Predileto “Mitron”, adentrei, em Salvador, o recinto em que o Vieira estalou. Comigo, não houve nem um cliquezinho, saí obtusa como entrei.” (…)
-Modéstia ou charme da Rosa?- especulei, enquanto a Gina demonstrava emoção com a lembrança da erudita “Flor do 86” (depois explico).
Interrompi a leitura da carta, para retomá-la depois, porque o Luca se pôs a ler, em voz alta, uma crônica do Carlos Heitor Cony sobre os bufões amargos.
Dizia o cronista, pela voz do nosso amigo, que não é de hoje que os artistas são os bobos da corte, “ou seja, do poder”. Citava ele dois exemplos, um de Victor Hugo e outro de Shakespeare. O primeiro bufão, ele anunciou como o da peça teatral “O Rei se Diverte”, e ao desenvolver a sua tese, Carlos Heitor Cony envereda pela ópera “Rigoletto” de Verdi, o que me levou a intervir na leitura do Luca.
-O Victor Hugo ficou uma fera com Verdi, quando este transformou a sua peça em ópera, mas se não fosse o compositor italiano “O Rei se Diverte” já teria caído no esquecimento.
Aproveitei o silêncio e prossegui:
-O rei que se diverte era Francisco I que, na ópera de Verdi, virou o Duque de Mântua por causa da censura austríaca sobre grande parte da Itália.
-E o Rigoletto? - quis saber o meu irmão.
-Rigoletto era Triboulet, o bobo da corte do reinado de Francisco I. Rigoletto deriva de “rigoller” - rir, em francês.
Sem modificar uma vírgula, Luca reproduziu para os presentes do Sabadoido este parágrafo de “O bufão amargo”:
“Não adiantou a vingança “a tremenda vendetta”, com que Rigoletto ameaçou o sedutor, por sinal, na melhor ária que Verdi escreveu contra o duque numa das suas óperas mais populares. Não adiantou: o poder se divertiu e quem pagou o pato foi o bufão, que ficou sem a filha e sem o emprego.”
-É a melhor ária, mesmo, da ópera?
Limitei-me a sorrir com a indagação do Luca. Se quisesse saber qual o melhor momento do Rigoletto, eu responderia, sem pestanejar, o quarteto “Bella Figlia dell' Amore”, que Franz Liszt considerava uma das melhores peças musicais criada pela mente humana.
Em seguida, Carlos Heitor Cony, levado pela voz do Luca, passou para o segundo exemplo: o bobo da corte do Rei Lear. Quanto ao Rei Lear, a autoria se restringiu a Shakespeare, apenas. É verdade que Verdi amadureceu, durante anos, a ideia de musicar esse drama, mas desistiu. E o Rei lear, como sabemos, não precisou do notável operista para se manter conhecida através do tempo, nem mesmo Otello, apesar de os musicólogos colocarem essa obra entre as três maiores do repertório operístico.
Eis um trecho do Carlos Heitor Cony que o Luca lia, na sessão do Sabadoido:
“Em “Rei Lear”, de Shakespeare, há outro bufão que diz a verdade o tempo todo para o velho rei que distribui seu reino e suas posses entre duas de suas filhas, sacrificando Cordélia, a mais fiel de todas. O bobo da corte chega a pensar que será chicoteado pela insolência, mas o rei limita-se a comentar: “És um bufão amargo” (“a bitter fool”). Ao que o bufão pergunta: “Qual a diferença entre um bufão amargo e um bufão doce?”
Como registramos acima, o cronista da Folha de São Paulo compara os artistas aos bobos da corte e, assim, encerra admiravelmente a sua crônica, como se vê:
-”A desculpa dada pela maioria, ou mesmo pela totalidade dos artistas, é que cumpriu a missão de denunciar a nudez do rei: julga-se a consciência da sociedade. É um consolo. Mas, no fundo, será sempre um bufão amargo.”
Antes de ir embora, pois o tempo urgia, fui de novo fazer pipi e me encontrei no caminho com a Gina, que ainda se mostrava encantada com o mimo que ganhara da Flor do 86 (Rosa viveu grande parte da sua vida na casa-biblioteca do patriarca dos Griecos, na rua Aristides Caire, 86).
Como Luca taxia como avião, antes de alçar voo, encontrei-o num buliçoso diálogo com meu irmão, participando o Vagner como ouvinte.
-O camarada disse que o Chico Buarque foi o maior compositor brasileiro do século XX. Ora, o Brasil teve carradas de excepcionais compositores: Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Tom Jobim, Ernesto Nazaré, Noel Rosa...
-Claudiomiro, a Bibi Ferreira, que tem uns 90 anos de teatro, não disse que “Gota d' Água” é a melhor peça já escrita?...
Depois do Luca, eu poderia citar como exemplo de absurdo a eleição promovida na Europa, por uma publicação, na virada de 1999 para 2000, que considerou John Lennon o maior compositor do milênio, mas preferi ser mais conciso:
-Pessoal, é aquela velha verdade que se aplica: gosto não se discute, se lamenta.”

terça-feira, 20 de março de 2012

2115 - Marlene e Emilinha, pela ordem

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3915 Data: 15 de março de 2012

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GRITOS E SUSSURROS NO SABADOIDO

PARTE II

Eu tencionava sair do cybercafé do Daniel e ir para o cyberconhaque do Cláudio e do Luca, ou seja, para a sessão do Sabadoido depois que a minha presença foi reclamada,porém surgiu no monitor de vídeo um esclarecimento do Elio Fischberg sobre uma celeuma que surgiu no meu trabalho. Explico-me.

Muitos dos meus colegas são opiniáticos: engenheiros entendem de tecnalidades jurídicas, advogados, de cálculo estrutural, e psicólogos entendem de tudo. Então ,espocou uma questão; diziam uns “entendidos” que não bastava a certidão do Estado para isentar uma empresa de responsabilidade fiscal, que se fazia também necessária a certidão da Procuradoria Geral do Estado. Pensei, então no Elio, e na sua bagagem de ex-revisor do biscoito Molhado, e resolvi consultá-lo. Eis, mais ou menos, um trecho da sua resposta:

-A Procuradoria do Estado não tem competência administrativa para isso, não é ela que certifica que determinada empresa é, por sua natureza, isenta de tributos. Sua finalidade é dar assistência jurídica, judicial e extrajudicial ao Estado, não certifica, por ele, estado, que empresas não tem o dever de recolher tributos.

Pronto, depois dessas palavras do “meu amigo Elio” (como diz o Luca), não só os opiniáticos, como os lunáticos sossegarão. Falando em lunáticos/lunáticas, alguns já se aposentaram.

Fui surpreendido com a presença da irmã da Gina, que veio me saudar.

-Eu ia lá fora.- justifiquei-me.

-Tubo bem, Carlinhos?

-Tudo.

E indagou pelos parentes mais próximos a mim antes de sair não só do quarto, como da casa.

Fiquei mais dez minutos diante do computador antes de rumar para mais uma sessão do Sabadoido.

Mal pisei o chão do quintal e ouvi a voz do Luca que lia um artigo de Hélio Schwartsman sobre a polêmica suscitada pelo Ministério Público Federal de Belo Horizonte, que ajuizou uma ação civil pública contra o dicionário “Houaiss” por causa das “expressões preconceituosas” contra os ciganos. Afirmando o cronista da Folha de São Paulo que as línguas, no fundo, são verdadeiros catálogos de preconceitos, citou vários exemplos, que o Luca reproduzia com a sua voz privilegiada de barítono, como beócio, capadócio, vândalo, lapônio, ladino, safardana, maltês, eslavo...

-E galego?- interrompi a leitura.

Senti falta do galego, palavra que eu, garoto atrevido, sempre trazia na ponta da língua quando queria ofender um vizinho espanhol.

Quando Hélio Schwartsman definiu “cretino” como aquele que padece de hipotireoidismo, aparteei de novo:

-Cretino é uma palavra que se origina de Cristo.

No dia seguinte, domingo, no Globo, o artigo do João Ubaldo Ribeiro me daria razão. Sim, o Ministério Público Federal de Belo Horizonte provocou, pelo menos, uma coisa boa: forneceu assunto para todo o mundo falar.

Quanto aos ciganos, propriamente dito, lembro-me de alguns, quando menino, que apareciam no Cachambi nas suas vestimentas características. Minha mãe, nessas ocasiões, segurando-me pela mão me alertava:

-”Ciganos pegam crianças para fazer sabão”.

Poucos anos depois, disseram-me que a carrocinha pegava os cachorros e transformavam em sabão. Surgiu, inevitavelmente, uma dúvida no meu espírito infanto-juvenil: éramos nós, crianças, que virávamos sabões, pegos pelos ciganos, ou os vira-latas, pegos pela carrocinha?

Se apareceram ciganos na minha infância, certamente surgiram, também, em Santa Teresa, na década de 50. Eis um bom tema para o cineasta Dieckmann, que se encontra em crise de criatividade, filmar: “Os Ciganos de Santa Teresa”, ou “Como Escapei de Virar Sabão”.

Luca largou, por momentos, os recortes da Folha de São Paulo e reportou-se à exibição teatral a que assistira na noite anterior: “Emilinha e Marlene”.

-Antes de você prosseguir, aviso que sou Emilinha.

-Eu também sou Emilinha.

-E eu, também.

Seguiram-me o Cláudio e o Vagner na predileção daquela que foi exaltada numa canção do Miguel Gustavo, na voz do Carequinha.

-Também sou. - garantiu o Luca.

-Quando me preparei para o concurso do Visconde de Cairu, na rua Rocha Pita, em 1960, estudei com a sobrinha da Emilinha Borba, que era bonita e simpática.- expus minhas razões.

-O Orlando Silva morou por ali, na Rua Rocha Pita.- informou meu irmão, que prosseguiu:

-Até o homenagearam, por lá, com um busto e a praça de nome Orlando e Silva.

-Roubaram a cabeça do Orlando Silva.- interveio o Vagner.

-Roubam a cabeça do Orlando Silva com a mesma frequência com que roubam os óculos do Carlos Drummond de Andrade.- pensei sem nada dizer.

Nesse ínterim, Luca relembrava as marchinhas que ouviu durante as duas horas e meia de teatro.

-Você recomendaria “Emilinha e Marlene” ao Elio Fischberg? - inquiri com seriedade na voz.

-Sem susto .- foi peremptório.

O Elio Fischberg me parece Emilinha, e o Dieckmann, Marlene. - imaginei sem me manifestar.

-Saí para ir ao banheiro, e me deparei com o Daniel, que retomara seu lugar no computador.

-Ensinando ainda o Facebook à Gina?

-Ela já sabe.

-Soube, Daniel, que a preferência dos internautas do mundo todo é pelo Twitter, o Facebook está em terceiro lugar.

-No Twitter, nós temos de escrever muito pouco.- criticou.

-O precursor do Twitter é César que, quando comandou as tropas romanas na Batalha de Zela, escreveu: “Vim, vi e venci.”

Ao retornar à sessão do Sabadoido, o assunto era o mesmo.

Luca entoou um velho sucesso melodioso, apesar do ritmo sacolejante, que identifiquei como baião.

-”Que nem jiló”; é do Luís Gonzaga.- reconheceu o meu irmão na sua discoteca interior.

Muito bonito.- concordaram todos.

-A Marlene gravou Chico Buarque, atuou como atriz no teatro, foi mais receptiva `as manifestações políticas...

-Sim Claudiomiro; a Emilinha era mais ligada aos fãs.

-Ela era um ícone dos homossexuais. Os aniversários da Emilinha Borba deixavam os “gays” em festa.

Falava, enquanto me vinham à mente outras cantoras que apaixonaram os homossexuais, o que Fellini retratou no seu filme E la nave va, como Maria Callas. E também a Barbra Streisand.

-Bem lembrado, Carlinhos.

Depois dessas palavras, Luca se referiu aos programas da Rádio Nacional, onde as duas cantoras rivais atuavam. Isso proporcionou que se cantasse o jingle do Programa César de Alencar que é obrigatoriamente ritmado por batidas das palmas das mãos.

O autor desse jingle do César de Alencar é o Chico Anísio. - disse meu irmão.

Soube-se, mais tarde, que se enganou; o autor é Haroldo Barbosa, parceiro de humorismo do Max Nunes.

segunda-feira, 19 de março de 2012

2114 - O jogo do bolo

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3914 Data: 12 de março 2012

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GRITOS E SUSSURROS NO SABADOIDO

Da cozinha da casa da Gina, eu ouvia as vozes do Daniel e da sua mãe que me chegavam aos ouvidos, ininteligíveis.

Cláudio, que abrira o portão da casa para mim, deixou-me só e foi nutrir de alpiste as rolinhas. Peguei, então, o jornal para ler. Dilma se havia com mais um corrupto que o Lula lhe deixara no colo: Ricardo Teixeira. O presidente da CBF viajou em 2007 para a Suíça, com uma comitiva de dezenas de políticos, sob as bênçãos do presidente da República e conseguiu trazer a Copa do Mundo de 2014 para o Rio de Janeiro. A sucessora, porém, não gostando da fama internacional de malfeitor do Cartola, cortou-lhe as asas. Segundo o noticiário, ele não duraria até os jogos da Copa do Mundo.

-E, então, Carlão?- era meu sobrinho que aparecia na cozinha com o seu costumeiro jeito alegre.

-Daniel, a ESPN afirmou que o time do Barcelona trocou 900 passes no jogo em que derrotou o Bayern Leverkusen por 7 a 1. Creio que essa estatística está errada.

-Deixa-me ver. - fingiu uma expressão pensativa, enquanto continuava.

-São 90 passes a cada 10 minutos de jogo... Na verdade, 120 passes, pois nunca uma partida dura 90 minutos corridos...

-Daniel. - gritou a Gina com uma entonação na voz que significava pedido de auxílio.

Enquanto o Daniel saía para ajudar a mãe, meu irmão, que ressurgia na cozinha e ouvira o diálogo entre mim e seu filho, fez seu comentário.

-Falava-se que o tome do Barcelona alcançava 700 passes por jogo, mas 900 só no treino de dois toques.

-Você se lembra dos treinos de dois toques, Cláudio?... Agora, o nosso futebol passou a imitar o europeu, riscou-se dos gramados o treino de dois toques. O jogador brasileiro não passa a bola tão bem quanto antes.

-O futebol de hoje ficou mais corrido. - contrapôs.

-Os jogadores brasileiros estão correndo em vez da bola...

Não terminei, porque a Gina estava agora na cozinha.

-O Daniel está me introduzindo no Facebook. - informou-me ela.

-O Facebook virou coqueluche. Como eu sou, por temperamento, antissocial, não vai ser a tecnologia que vai me mudar. - afirmei.

-Eu vou mais pela farra... - esclareceu-me.

Nesse instante, o Daniel voltava.

-O pessoal está trocando o Orkut pelo Facebook? - perguntei-lhe.

-A maioria está com os dois. - respondeu.

-Ontem, eu assisti àquele filme do professor esquizofrênico que recebeu o Nobel de Economia de 1994 pela Teoria dos Jogos. O que é isso?...- interveio a Gina, mudando de assunto.

-Eu vi no cinema “Uma Mente Brilhante”. É o filme sobre o professor John Nash, que o Armínio Fraga conheceu quando estudou nos Estados Unidos.

-E a Teoria dos Jogos?- insistiu a Gina.

-No filme, um grupo de rapazes, para abordar com êxito um grupo de moças, teria de abrir mão daquela que era a mais bonita. Dessa coisa trivial, John Nash desenvolveu a Teoria dos Jogos que é importante não só para a economia, como para outras ciências.

-Ainda não entendi a Teoria dos Jogos. - reclamou minha cunhada.

Recorri, então, a um exemplo didático de um professor da Fundação Getúlio Vargas.

-Suponhamos que uma mãe tem de dividir um bolo para duas filhas que brigam pelo pedaço maior. A melhor estratégia seria essa mãe designar uma filha para cortar o bolo e a outra para fazer a escolha do pedaço.

-Assim, aquela que cortar o bolo tentará, da melhor maneira possível, dividir em 50%%. - deduziu a Gina.

-Ela tentará a divisão mais correta. Isso, grosso modo, é a Teoria dos Jogos. - frisei.

-Carlão, a Lan House está à sua disposição. - anunciou o Daniel.

Diante do computador do meu sobrinho, busquei o último lançamento da Triumpho 30 Produções. Senti-me frustrado, quando constatei que não havia fita alguma. E perguntei-me:

-Será que o Dieckmann atravessa uma crise de criatividade que acometeu até o Frederico Fellini?...

Bem, o grande cineasta italiano superou o problema com o filme sobre essa crise, que se tornaria uma obra-prima, “Fellini 8 1/2”. O nosso amigo poderia lançar alguma fita como “Dieckmann 3 1/2”. (*)

Em compensação, ele remeteu ótimos e-mails com vídeos anexados que poderiam se chamar “A união faz a força”. Predadores partem para colocar em ação a cadeia alimentar, mas aqueles que seriam seus petiscos se unem e frustram, de uma maneira cômica, a intenção dos malvados.

Depois, deparei como uma mensagem eletrônica que dizia tratar-se de uma piada inglesa transcrita na língua original. Li, e não esbocei um sorriso sequer. Será que o significado das palavras não é o que penso?... Consultei o Michaelis Inglês-Português e concluí que eu não estava errado. Sou, então, o Senhor Obturado (o Válter D' Ávila) versão inglesa? Reli a piada e, no final, me lembrei do que dizia um velho professor: “Nas piadas inglesas, o riso é arrancado a fórceps; nas piadas americanas da Playboy e das Seleções, também.”

Elio Fischberg me enviou o “Introdução e Rondó Caprichoso” do Camille Saint-Saëns, executado por um chinês num instrumento da sua terra cujo nome me escapou. Apesar de eu ouvir essa peça desde a época em que eu sintonizava a Rádio Ministério da Educação, ou seja, desde a minha adolescência e com violino, fiquei embevecido. Lembrei-me também do belo filme dirigido pelo Arnaldo Jabor, com a Fernanda Torres, premiada no Festival de Cannes, e Thales Pan Chacon: “Eu sei que vou te amar”. Essa música intensificava o pathos amoroso do casal.

Espero que o Elio Fischberg encontre outros vídeos musicais de Saint-Saëns, como “A Dança Macabra”, que eu tanto escutava, mas que, infelizmente, está saindo do repertório das grandes orquestras e até dos músicos exóticos como esse chinês.

Enquanto divagava, chegavam aos meus ouvidos não só as vozes do meu irmão, do Luca, do Vágner, do Daniel e da Gina, como o da irmã dela.

-Cadê o Carlinhos? - perguntou a Jura.

-Eu estou aqui.

Mas eu não tenho a voz de três oitavas do Luca, cujos decibéis rivalizam com as trombetas de Jericó, por isso, não fui escutado por ninguém.

(*) Procuramos o Dieckmann mencionado e ouvimos uma resposta rouca, curta e grossa: “-Não faço nada pela metade.”